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Sorte existe?

Só eu sei

O que eu passei

Pra chegar até aqui.

Pra chegar? Aonde?

Rosto bonito, quem vem lá. Carrega um saco de areia e um pilão pra moer semente de mostarda.

Parece que nada faz sentido até sentir.

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Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“É hoje, abre a porta que a sorte chegou.”

Dona Sorti entrou com tudo pela porta. Toda esbelta e elegante, vestia um casaco de pele de morcego e brincos de diamante 8 quilates. Um raio de sol refletia em seu par de orelhas, mostrando que aquela mulher não era qualquer senhora.

“Bon jour mademoiselle, hoje é seu dia de sorte”, disse a velha enquanto levantava os braços e encarava a janela atrás da anfitriã.

Persiene, sem entender nada, serviu-lhe uma xícara de chá e, abismada, permaneceu calada.

Dona Sorti então começou a caminhar pela casa, observando tudo como quem não quer nada. Mexeu aqui, vasculhou ali, abriu todas as gavetas do cômodo até encontrar o bendito documento.

“Aha! Aqui está seu presente!”

A velha então mostrou a Persiene um anel de pedra-sabão que retirara de uma caixinha no fundo do armário da TV. Era pesado, mas o sentimento ao colocá-lo em seus dedos era de leveza e alegria.

“Estava aí o tempo todo?”, perguntou a moça.

“Sim. E não.”, disse a Dona. “O meu presente sempre esteve guardado aqui, mas você nunca iria encontrá-lo pois estava fora do seu campo de visão.”

Sorti então começou a explicar porque Persiene nunca teria enxergado o anel se não tivesse ficado tanto tempo sem ele. Andando de um lado pro outro de forma animada e espalhafatosa, a velha lecionava à jovem quão importante e essencial foi a atitude da moça de assumir responsabilidade.

“O meu papel”, disse ela, “é servir como uma justificativa para aqueles que não tem nenhuma para dar em troca, e presentear aqueles que têm”.

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Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“Senhora, temos uma reclamação no condomínio. Seu cachorro fez suas necessidades no tapete do vizinho novamente.”

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Foto: Sydney, Australia

Entrevista de Emprego

“Então, Cleiton, conte-me mais sobre você.”

“Hmm, o que o senhor quer saber?”

“Quem é você?”

“Como assim quem sou eu?”

“Ué, qual seu nome? Idade, sexo, endereço. Hobby! Tem hobbies? O que você faz no tempo livre? Na verdade eu não ligo, por que você se inscreveu nessa vaga?”

Porque eu tenho 20 e poucos anos sem dinheiro falido pobre vivendo à custas de vento querendo ter um padrão de vida do chefe dessa empresa que é filho do dono da empresa e que saiu da fralda ganhando 20 mil reais por semana?

“Então, Cleiton, conte-me mais sobre você. Quem é você e por que se inscreveu pra essa vaga?”

“Tirando o fato de que eu não faço ideia de quem eu sou ou do que eu gosto e encontrei essa vaga no google com o título “salário promissor”, eu amo os valores dessa empresa e me identifico muito com a vaga. Sou trabalhador, homem honesto, dedicado e acredito ser o candidato ideal para o que o senhor tá procurando.”

“Cleiton, queremos saber se o seu perfil está alinhado com os planos da empresa e se há realmente um futuro pra você aqui dentro. Aonde você se vê daqui 10 anos?”

Olha moço, o senhor tá achando que eu sou o quê? Mãe Dináh? O brasileiro não tem um dia de paz e você tá me perguntando aonde eu me vejo daqui 10 anos? No fogo do inferno se tu me fizer pensar sobre isso.

“Ah! Daqui 10 anos eu me vejo trabalhando na ONU como Agente de Paz no Uzbequistão, ou sendo CEO de uma grande empresa, como o Facebook, sabe?”

“Legal, Cleiton! Parece estar alinhado com as pessoas que estamos procurando mesmo. Só tenho uma dúvida: aqui na sua Carta de Motivação, quando se inscreveu na vaga, você disse que estava ansioso para trabalhar como contador, mas nós somos um escritório de advocacia. Queria entender, houve algum engano?”

PQP. Que merda! Eu sabia que não deveria ter usado a mesma carta de motivação pras 500 vagas aleatórias que encontrei na internet. Como fui achar que mudar só o nome da empresa iria ser suficiente? Estagiário FDP que não tinha nada pra fazer e leu minha carta com calma. E ainda avisou o chefe!!

“Nossa, senhor, me desculpa. Deve ter escrito por engano. A verdade é que estou extremamente ansioso para trabalhar 12 horas por dia como advogado júnior ganhando 1.000 reais sem vale transporte nem vale alimentação assinando petição e levando cafézinho pro senhor! Quando eu começo?”


Quem somos nós e porque nos inscrevemos em vagas? Quem sou eu?

Eu achava que era A, mas agora acho que sou B. Queria ser A, tentei, mas algo me disse que eu queria ser B. Tentei ser A por um tempo (e fui), mas não me imaginava sendo A daqui 10 anos.

Daqui 10 anos, ser B parece bem mais legal. Eu sempre quis ser B, será que vou esperar 10 anos pra me torna-lo?

Nada impede que a crise venha depois, mas, na maioria das vezes, a crise dos 20 e poucos anos – que começa nos 17 – é doida e sorrateira. Por um momento, a gente consegue ignorar e fingir que nada tá acontecendo, mas de repente ela vem que nem um furacão derrubando tudo que tá na frente: que que eu quero fazer da vida?

Independente da renda financeira, cor de pele, ou gênero. mesmo se em diferentes nuances e às vezes com tópicos ou temas diferentes, todo jovem adulto enfrenta internamente essa crise.

Eu acho que só há uma maneira de enfrentá-la: Encarando-a. Aceite, viva, sinta, se questione, descubra!

Antes da pergunta brotar, a gente começa a perceber a infinidade de opções que se existe pra fazer da vida. É tanto, mas tanto trabalho diferente e maluco que existe por aí, que a gente fica mais perdido que barata tonta. Mas e se eu NÃO quiser fazer nada da vida?

É louco também dar um shift e mudar de vida totalmente. Quanto mais cedo melhor, mas nada impede que isso aconteça quando eu tiver 56 anos.

Na-da impede.

Não vou nem continuar pra não te deixar doido. Mas isso é coisa de se ficar maluco. Provavelmente terão mais textos como esse, mas por enquanto vamos todos compartilhar a dor do Cleiton de passar por mais um entrevista de emprego com a pergunta: por que se inscreveu pra essa vaga?

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Foto: Ghent, Bélgica.

Esconde-Esconde

Sentimentos escondidos,

Hoje eu me peguei pensando sobre sentimentos escondidos. Aqueles que moram nas profundezas do coração, nas águas mais turbulentas e difíceis de navegar.

É lá que ficam as memórias, sentimentos, e emoções que não quero pensar. Nem sentir, nem me emocionar. No dia-a-dia eu não sinto, nem choro, nem rio. Apenas esqueço e tento não lembrar.

Sentimentos escondidos. Como o tempo é relativo?

Dois flamingos caminhavam no deserto em busca de água. Depois da ninhada, o bando iniciou sua jornada em direção ao lago para alimentar seus filhotes. No meio do caminho, dois flamingos se conheceram. Um percebeu o outro no meio da multidão, e seus olhares se cruzaram. Foi o que bastou. Mil sentimentos floresceram

História turbulenta. Final feliz? E o tempo levou…

E o tempo passou. Sentimentos escondidos, de onde vem e porque se escondem? É proteção? Indiferença? Escrevi mil cartas e nenhuma delas me trouxe uma resposta,

Ah, essas emoções que se escondem. Eu daria tudo pra ter um momento de conversa e entender o que elas tem a dizer. Iria eu gostar? Me decepcionar? Ter a certeza que é o que parece ser?

Vamos dançar enquanto é tempo.

Tempo… será que dá tempo? Falta quanto tempo?

Se é que um dia vou ter um momento de conversa com o tempo. O que ele quer me dizer?

Já sei a resposta mas não quero ouvir. Vou fingir que é outra coisa e curtir o sentimento que essa imaginação me traz

Se não tenho vou fingir que tem

Sentimentos escondidos? Quais dos seus apareceram?

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Foto: Céu de Kalibo, Filipinas

Dois meses em solitária

Dia 15 de março de 2020. Estávamos há um dia do evento que havíamos preparado nos últimos meses, uma simulação de Comitês da ONU. Em paralelo, a escrita da tese de mestrado e um estágio em um escritório internacional já nomeado pro Prêmio Nobel da Paz.

Murmurinhos. “Será que a gente cancela?” / “Eu acho que não, não vai chegar aqui” / “Cancela sim, é mais garantido”. O dia seguinte amanheceu com uma mensagem da coordenadora dizendo que o evento havia sido cancelado. Adiado, até, sabe-se lá quando.

Primeiro dia de quarentena. Sozinha, em países de distância do meu país. O dia em que o Abre a Janela nasceu, primeiro dia de uma grande mudança. A felicidade em poder descansar, em criar um blog, respirar, acordar mais tarde.

Primeiro dia de quarentena. Primeiro dia do quasi-apocalipse, supermercado lotado, pessoas em frenesi. Estava agora proibido se encontrar com amigos, ficar em parques, correr na rua. A regra então era ficar sozinho.

Foram tempos loucos. No começo, não deu nem pra sentir a quarentena rolando. Dias se resumiam a escrever a tese, fazer o almoço, estagiar, correr, fazer a janta. Inclusive final de semana. A vida em um mundo paralelo e unapocalíptico.

Isolamento social? Foram dois meses de quarentena a sós, longe de qualquer ser vivo. Sozinha, eu tinha 19m² de hectare e uma varandinha inóspita no meio do frio neerlandês. Vivendo um sonho, eu nem enxergava os dias passarem. Não sentia a falta de nada, não queria falar com ninguém. Meu único objetivo era fazer o que eu tinha que fazer e não me deixar chegar a exaustão. Foi quasi-burnout.

Dois meses sem falar com ninguém pessoalmente. Sabe o que é isso?

Uma experiência maluca, uma oportunidade de crescimento e evolução. Não que eu recomenda, mas, se eu fosse médica, prescreveria.

Ter foco deixa a gente anestesiado. Mergulhei em um processo de estudo sobre desenvolvimento pessoal e autoconhecimento, me joguei nas águas do meu oceano sem pressa pra voltar à superfície. Mesmo durante o burnout, o isolamento social trouxe uma paz mental jamais sentida antes. Não me senti sozinha em nenhum momento durante esse período.

Até sentir tudo de uma vez.

Ficar dois meses sem contato humano -nenhum- foi um processo destrutivo e construtivo ao mesmo tempo. Me levou a um estado de autossuficiência que me fez duvidar da necessidade de interação social. Eu me dei uma festa de aniversário em que eu fui a única convidada e foi uma das melhores festas que eu já fui, sério.

Sinto o impacto desse retiro espiritual moderno até hoje, e sei que ainda estou me recuperando. Procurando um equilíbrio entre o meu eu solitário e o meu eu social. Entre o meu impulso instintivo de mergulhar no meu mundo e minha resistência/vontade de sair pro universo social. É tão confortável aqui dentro, sabe. Zona de conforto?

Lembro da primeira vez que me reuni com amigos depois desses dois meses. Foi caótico e um pouco desesperador lidar com tanta energia diferente. De repente, eu não sabia mais estar em um ambiente barulhento e normal. Esse dia foi phoda.

Acho que hoje eu entendo quem resolve se demitir do emprego, jogar a família pro alto e correr pra um monastério nas montanhas do Himalaia. De certa forma, entendo o Aubrey Marcus ter ficado uma semana sozinho em um quarto escuro, ou o McConaughey ter cogitado virar monge.

Cada dose de solitude são 50ml de autoconhecimento. Cuidado para não beber muito, mas uma tacinha de vinho por dia não faz mal a ninguém. Quem consegue tomar a garrafa inteira de uma vez?

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Foto: Normandia, França.

Years and Years

Faz um tempo – anos – que eu não curto curtir o Instagram.

Para você que está lendo isso no futuro, quando eu já me tornei uma versão fake da Clarissa Pinkola Estés, Instagram é uma rede social muito usada durante os meus anos de juventude, aonde a galera posta(va) fotos de seus gatos e amigas com duck face e selfies de espelho na balada – também tem a clássica na academia, né?

Me lembro de ter começado a usar Instagram em 2011, no auge da minha adolescência. Era muito maneiro e divertido, mas de lá pra cá muita coisa mudou. Antes, os filtros do Insta eram péssimos e as fotos ficavam piores com do que sem. Era demais!

Hoje, é surreal a -perfeição- que o filtro deixa em uma foto.

Eu me odeio por usar Instagram e ainda não conseguir me libertar da rede. É um papo clichê esse, frase repetida por muita gente, mas é verdade.

Atualmente, meu feed deixou de ser um lugar para olhar fotos aleatórias e virou uma propaganda de televisão e plataforma de autoafirmação/autoimagem absurda. Parece que toda e qualquer publicação do meu mural é alguém, seja pessoa física ou jurídica, se promovendo ou divulgando seus serviços. Viramos escravos da ditadura Instagraniana.

De certa forma, escravos mesmo. Muitos queremos deixar de usar as redes, mas não conseguimos. Principalmente quem depende financeiramente da rede, há várias regrinhas para que uma publicação atinja um alto número de pessoas e se torne mais visível e conhecida. Não quero fazer uma analogia simplória à escravidão, mas é algo a ser pensado.

Pra mim, é triste. É triste ver, na prática, quão maior é o engajamento das pessoas em posts sem conteúdo algum. Como modinhas do Instagram são tão sem sentido. Por quê você iria querer se parecer com alguém?

Por que você iria se parecer com alguém que, de diferente, só muda o valor da conta bancária. E a quantidade de pessoas que (acham que) te conhecem.

Sinceramente, esse negócio de Instagram tá me cansando.

O mais louco dessa minha irritação é que daqui a pouco vou estar lá olhando meu feed do Instagram. Olhando vídeos desinteressantes de pessoas que não se tornaram tão interessantes ainda. Investindo o meu tempo em nada de valor. Muito provavelmente, também sendo uma pessoa desisteressante para outros, que vão olhar minhas postagens e pensar que eu não me tornei tão interessante assim.

E se daqui a pouco eu começar a usar o instagram pra me autopromover também? O Abre a Janela tem instagram – @abre.janela. Segue lá!

Esse post não tem nenhum objetivo a não ser um espaço para eu desabafar. Mas o objetivo desse post também é te fazer pensar.

Todos caímos na rede e agora somos peixes. Como acabar com a pesca predatória?

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Foto: Ilha Sul – Nova Zelândia

Diga “Xis”

É sobre dar tempo ao tempo. Nada além de paciência para esperar o tempo tomar o tempo necessário para agir, no seu tempo.

Imagine uma parede branca com pequenas fotos penduradas nela. Tem muitas fotos, com todos os tipos de cores e amores, bem pequenas, estilo Polaroid. Cada foto representa um acontecimento diferente na sua vida.

Sabe quando a gente decide escolher umas fotos pra revelar e botar em um álbum físico? Se imagine olhando e selecionando aquelas que mais te lembram bons momentos. Vai pegando as fotos com pessoas especiais, lugares que amou, dias perfeitos. Dá uma risada só de lembrar do dia que pintou o cabelo de roxo e fez uma tatuagem de picolé (uma não, várias) no braço (inteiro).

Experimenta deixar essas fotos em stand-by e revelá-las só no ano que vem. Você irá ficar chocado com a quantidade de fotos que deixará de lado, pois não parecem mais ser tão especiais assim. A vida mudou, a amizade com aquela bff acabou. “Nossa como eu era feia” – vou revelar pra quê?

Você mudou. Hoje, você está à algumas mudanças de atitute de distância daquele ser com cabelo justin bieber do passado.

Mas, o que mudou? A impressão que dá é que aquelas fotos já não fazem mais sentido. “Nessa foto eu estava passando por uma desilusão amorosa, e lembro que foi um período difícil pra mim. Por que revelar?”

Imagine uma parede branca com várias pequenas fotos Polaroid penduradas nela. As fotos estão em ordem cronológica, e uma de um dia diferente do outro. A primeira foto é você neném (parece que essa fase nem existiu, né?), passando por você criança, aborrecente, jovem adulto, morando em um puxadinho de madeira no quintal dos pais, agora noivo, foto do casamento, foto do primeiro filho, do segundo, até chegar em uma foto de você ontem. Com a barba a fazer, olheiras, barrigudinho, usando uma camisa polo e um tenis nike shox. “Como eu era brega quando usava calça de veludo”

Na parede, tem 1 foto por ano vivido. 50 fotos. “Eu não quero lembrar da época que morei em um puxadinho de madeira no quintal dos meus pais, por mim nem revelava essa foto. Graças à Deus, hoje a minha vida é bem melhor.”

É louco como a gente não pensa que hoje eu só sou um senhor de 50 anos barrigudinho que usa camisa polo e um tênis nike shox no mesmo look porque um dia fui um jovem magricelo que usou cabelo até a cintura e calça de veludo grená.

Retire da parede a foto do puxadinho de madeira no quintal dos pais e junto seja obrigado a tirar aquela foto sua com a chave do primeiro apê em São Paulo. Deixe de revelar uma daquelas fotos que você separou no ano passado, e tenha um álbum de memórias incompleto.

Pois toda e qualquer situação que aconteceu no passado, seja ela boa ou ruim, te levou até aonde você se encontra. Cada uma daquelas fotos de cada um dos seus anos vividos, de cada fase de moda que você experimentou, formam a construção do seu ser, e são você, quer queira quer não.

Hoje, Clodoaldo prefere mil vezes morar em uma casa legal em São Paulo do que dividir um puxadinho com a falta de limpeza de um jovem adulto que mora sozinho. Mas Clodoaldo não pode jamais deixar de levar consigo a foto do barraco. Nem a da calça de veludo, e nem a do bebê que ele nem lembra que um dia já foi. Se não fosse por esses Clodoaldos do passado, o de hoje não seria nem a metade do que ele é.

Agradeça o você de ontem por se tornar o você de amanhã, e respeite a importância que ele teve neste processo.

“E aí semente, já nasceu?”

Era uma vez uma jardineira.

Quando criança, Shirley, a futura jardineira, não gostava de plantas. De flor, mais especificamente. De acordo com ela, flores eram objetos sem valor. Dar flor de presente para alguém, então, só mostrava o quanto a pessoa não gostava tanto assim da outra – um presente fácil e que, na verdade, não queria dizer nada.

Ela não admitia, mas para ela, flores eram tão maravilhosamente surreais e perfeitas, que acabavam se tornando feias e banais. Sabe aquela pessoa que você olha e pensa “Meu Deus, essa pessoa é tão linda e sem defeitos que fica até feia e sem graça”? Então.

A vida foi passando e Shirley virou adulta. Por puro e simples prazer de comer, e preguiça de ter que ir no supermercado comprar salsinha para depois de dois dias ela morrer de frio no fundo da geladeira, Shirley resolveu ter uma hortinha em casa. Comprou um vasinho de manjericão, botou na varanda, e lá deixou.

Mas Shirley tinha pena de comer o manjericão. Ele era tão cheiroso! “E se eu tiver botando muita água? E se eu comer tudo e ele não crescer mais?”. Pobre e ingênua Shirley.

O primeiro vasinho morreu de frio. O outro de sede. O terceiro de causas naturais, vulgo falta de sol.

Shirley cansou de matar seu manjericão e resolveu pesquisar mais sobre plantas. Algo dentro dela se conectou com o basilico e começou a enxergá-lo não só como um um alimento, mas como uma espécie de filhote, que precisava de cuidados para viver uma vida saudável.

A vida tem tanta sincronia que fez Shirley se tornar mãe de plantas na mesma época que ela se tornou mãe de si mesma. Deixe-me explicar.

Shirley criou uma horta a partir de sementes de diferentes plantas. Regou com carinho, cuidou delas e as esperou brotarem do chão. A maioria demorou meses pra nascer, outras brotaram rápido mas não deram frutos, e uma outra, que ela tanto ansiava, teve sua terra invadida por uma planta vizinha e não teve espaço pra nascer. Frustrada, Shirley até tentou plantar amor-perfeito algumas muitas vezes, mas a semente não deu nem sinal vida em nenhuma.

Porém, algumas sementes brotaram e se tornaram mudas exuberantes. De ficar parado admirando, quão lindo aquilo se tornou.

Porque a vida é assim. É uma crença pessoal, mas, na minha opinião, tudo que eu faço, por menor ou maior que seja, estou plantando uma semente. Que pode não dar fruto, que pode ser um fruto de uma semente plantada no passado, que pode ameaçar crescer mas não ir pra frente, que pode ser ofuscada por uma semente vizinha que eu nem sabia que tinha plantado, ou pode nunca nascer. Mas é uma semente que estou plantando.

Só isso já daria uma semana inteira de reflexão. Às vezes, a semente que eu plantei pode até nem ser pra mim, mas para benefício de alguém próximo. Outras vezes alguém pode plantar, sem saber, uma semente pra mim, ao fazer algo que me inspira. É muito pano pra pouca manga.

Plantando, nossa personagem super fictícia Shirley passou a entender o quão incrível é esse processo de ver suas sementes, filhas do seu próprio esforço, brotarem do chão. Quando se tem consciência desse processo, viver se torna muito mais leve. Fica mais fácil entender que sementes levam um tempo pra nascer, depois pra se tornarem mudas, e mais ainda pra dar frutos. Que morrer faz parte do ciclo, e que depois é só plantar de novo.

Hoje consigo esperar cada etapa com tranquilidade.

Além disso, se tem uma coisa que eu aprendi esse ano foi ouvir o que a natureza tem pra me falar. Ela é realmente um espelho da vida, e uma fonte de sabedoria infinita.

E eu vi isso na prática, com meus próprios olhos, dentro da minha própria casa. Esses tempos, comprei uma muda de taioba que era bem baixinha, e coloquei ela na sala. Percebi que estava precisando de luz, porque as folhas estavam ficando amareladas. Então, coloquei ela embaixo da janela do escritório.

A janela era mais alta que a planta, mas proporcionava uma boa claridade. Você, leitor, acredita se eu disser que as folhas da taioba criaram um mecanismo de adaptação e cresceram até a altura da janela? A folha amarelada que ela já tinha morreu, e uma nova nasceu, um pouco mais alta que a última. Essa também morreu, e uma nova nasceu, com o caule mais alto ainda. Esse ciclo foi acontecendo até ela chegar-à-altura-da-janela, e depois parou de morrer.

Isso não é simplesmente tão incrível? (!!!!!)

Mais que incrível, me ensinou uma lição valiosa. Se, para se adaptar, uma planta morre e renasce algumas vezes, até conseguir o que quer, porque eu não posso fazer isso também? Não só posso, como devo! Deixar uma versão nossa antiga morrer e nos tornarmos alguém melhor é um ciclo natural, que deve ser repetido até o fim dos tempos. Até eu conseguir o que eu quero, até eu me tornar quem eu quero ser, até eu chegar lá e descobrir um novo lugar que eu quero chegar.

Eu -juro- que a natureza fala. E ela me disse pra não ficar ansiosa e parar de ir conferir todos os dias se minhas sementes já brotaram. Ela me disse para ter paciência e continuar plantando várias sementes todos os dias. Disse ainda que cada uma tem o seu próprio tempo de crescimento, e que, pelo menos uma delas, vai nascer e dar frutos maravilhosos.

Amém

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Foto: Praia do Campeche, Florianópolis.

Ménage à quatre

Eu não falo francês ainda pra saber se é verdade ou não, mas, de acordo com o oráculo Google, “ménage” significa 1. domicílio familiar, moradia, lar e 2. o conjunto de tarefas rotineiras e afazeres relacionados com a casa. Mantenha isso em mente.

Também de acordo com o Google, “indivíduo” significa não dividual, indiviso. Mas isso é mentira e eu posso provar.

Imagine você que Beyoncè e Jay-Z são pessoas reais e cheias de crise existencial como qualquer um de nós. Que eles são um casal normal, vivem escondidos nas profundezas da vida social normal de qualquer tiozão casado com filho com sonhos ainda não alcançados, e que ainda não descobriram a fórmula secreta que mistura beleza + dinheiro + fama + não necessariamente felizes + habilidade surreal pra cantar.

Imagine que Beyoncè tem uns 20 anos e conheceu Jay-Z em um rolê normal em uma festa universitária qualquer e crie seu encontro romântico perfeito a partir daqui. Os dois começaram a flertar, tudo são flores, declaração de amor no Face, pegação constrangedora na festa de família etc. Nada que um começo de namoro de outros casais apaixonados por ai não tenha tido.

O tempo passa e os dois continuam tendo um relacionamento amoroso. Se formam na faculdade e, um tempo depois, vão morar juntos.

Beyoncè e Jay-Z são duas pessoas individuais que, juntos, formam um casal. Para se formar um casal, no mínimo, precisa-se de duas pessoas. Mas, na verdade, a Beyoncè sozinha já é duas pessoas, e Jay-Z sozinho já é duas pessoas.

Juntos, eles são quatro pessoas. Wut?

O meu namorado na vida real – que não é o Jay-Z – costumava reclamar que, além de me namorar, ele namora também a minha “cabeça” (como se eu não tivesse que namorar a dele, né, mas ok). Ele reclamava que ele namorava eu & também minhas inseguranças. Que quando a gente discutia, ele tinha que conversar comigo & com meus pensamentos de dúvida/insegurança que voltavam de vez em quando.

Muitas vezes (eu diria sempre), brigas não são entre os dois indivíduos que formam o casal. Brigas podem ser entre a própria Beyoncè e suas inseguranças, que se externalizam em um evento aleatório de conflito com Jay-Z (que pode ficar inseguro e brigar com seus pensamentos também).

Um relacionamento de duas pessoas é, na verdade, um relacionamento entre quatro. Minha Alma & Meu Ego + A Alma Dele/a + O Ego Dele/a.

Morar junto, então, é um verdadeiro ménage. Ménage à quatro, uma mistura de tarefas domésticas, uma mistura de dois indivíduos individuais com inúmeros afazeres rotineiros e que juntos formam um lar.

Independente de que idade ou sexo seja você ou seu parceiro/a, estar em um relacionamento com outra pessoa é estar em um relacionamento com a cabeça dela também. Com as lutas e inseguranças dela também. É saber que, quando ela estiver brigando com você, na verdade vai estar brigando com a outra parte dela mesmo.

Indivíduos são sim divisíveis. Uma hora eu posso ser minha parte positiva, e outra hora eu posso ser minha parte negativa. E o lado positivo somado ao negativo forma um ser só, fisicamente.

Principalmente agora que Beyoncè e Jay-Z moram juntos, eles vão ter que entender que um vai namorar a insegurança do outro. Vão ter que aprender a se respeitar, a abrir espaço para a individualidade dupla de cada um, e se virar nos trinta pra fazer dar certo esse ménage à quatre.

É… complexa essa história de relacionamento amoroso.

Imagina fazer um ménage à quatre à troi?

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Nota da escritora: para qualquer pessoa que estiver lendo isso, principalmente o meu namorado atual que eu gostaria que fosse mas não é o Matthew McGonaughey: ajude em casa!!! Se você usa a sua casa tanto quanto o seu parceiro/a, divida e *cumpra* suas tarefas domésticas! Bjs 😉

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Foto: Praia da Gamboa, Bahia – Brasil

Ter responsabilidade inclui não ser responsável

Olá, meu nome é Karina, tenho 24 anos, sou estudante de farmácia e moro em Jacarandá. Sou amiga da Kelly. Ah, eu acho que ela deveria ter feito diferente. Estava conversando com uma amiga e nós duas achamos que a Kelly está errada.

Oi, me chamo Cilene, tenho 28 anos, trabalho com tecnologia, moro em Jacarandá. A Kelly é minha irmã de alma, e nos conhecemos através do trabalho. Mas faz uns dois meses que não falo com ela. Pois é, nem eu entendi a Kelly. Namoro há 5 anos e nunca foi tão rápido que nem ela…

Eai, meu nome é Cassiano, conheci a Kelly através de rolês. Ela é sangue bom, pô, gente boa. Ah, sou designer, daqui uma semana faço 23 anos, e moro em Jacarandá, no mesmo bairro que a Kelly. Acho que cada um devia cuidar da sua própria vida. Acho que a Kelly mandou bem.

Meu nome é Róger, estudei a vida inteira com a Kelly e sempre fomos amigos. Tenho um carinho por ela mas não nos vemos há anos. Eu sou de Jacarandá mas hoje moro em Milão, tenho 27 anos e sou estilista. Deixa a garota ser feliz!

Oi, sou a Denise, tenho 25 anos e não lembro direito como eu conheci a Kelly. Acho que da vida, somos da mesma cidade. Mas tenho ela no instagram e sempre vejo os stories que ela posta. Ela terminou com o namorado, né? Ouvi dizer que estava grávida mas o cara não quis assumir. Coitada.

Oi, eu sou a Kelly, tenho 24 anos, e moro em Jacarandá, capital de Cidreira. Trabalho com T.I. e acabei de ser promovida na empresa. Tô feliz porque com esse aumento consegui alugar uma casinha pra mim perto dos meus pais e vou conseguir estar mais presente na família. Em geral, a vida tá bem. Acabei de fazer um check-up e minha saúde está ótima.

Também conheci alguém. Mas não é qualquer pessoa, é um amor diferente. Que me faz diferente, que me faz mais feliz.

Descobri recentemente que meu ex me traía. Ele é lindo, o típico galã de novela, cheio de amigos e conhecido da galera. Ele me fazia rir. Namoramos dois anos. Até que um dia recebi uma mensagem dele dizendo que estava noivo e que não podíamos ficar mais juntos. A (outra) namorada dele, que mora há uns 500km daqui, ficou grávida e eles resolveram formar uma família.

Fiquei devastada por umas duas semanas. Até começar uma aula de inglês. Até conhecer o meu professor de inglês. Foi amor à primeira vista, não sei explicar. Nunca senti isso antes.

Ele se chama Cadu, é separado, tem 33 anos, é professor e tem um filho de 5 anos. Ele é um paizão, e a criança é um amor. A mãe é presente, mas casada com outro homem. Todos ali se dão bem e se respeitam. Ele me respeita muito, e nossa aproximação foi muito natural.

Mas ele é fora do ciclo da galera. Tem gente que me apoia, mas a maioria do pessoal acha que eu estou desesperada há procura de outra pessoa, porque faz só três meses que levei um pé na bunda. O pessoal me julga porque já conheci o filho dele, porque ele é mais velho, porque sou interesseira, porque sou sei lá mais o quê.

Eu sei que, olhando de fora, pareço irresponsável. Mas eu tenho consciência do que eu tô fazendo e do que estou sentindo. Eu consigo ver diferença do meu antigo relacionamento para o atual. Eu consigo perceber o quão feliz estou e o quão bem melhor o Cadu me trata. Eu escolhi, de forma consciente, deixar acontecer tudo o que está acontecendo.

Eu tenho responsabilidade sobre os meus atos. O que eu não tenho responsabilidade, entretanto, é do que os outros vão pensar de mim. Eu não sou responsável nem pelo que falam de mim, nem pelas diferentes versões da minha história, nem por quem sabe sobre a minha vida, nem pelos julgamentos que se espalham sobre quem eu sou.

Ter responsabilidade sobre mim significa assumir a não responsabilidade sobre o que os outros pensam de mim.

No fundo todos já sabemos disso. Eu nasci ouvindo que não é para eu me importar sobre o que os outros falam ou pensam sobre a minha pessoa. Mas botar isso na prática é ooooooutra história.

Tudo isso que está acontecendo me fez pensar bastante. Ter me envolvido com o Cadu mudou a minha vida e me fez tomar diversas decisões em relação ao meu futuro. Me fez ser mais forte, bancar as minhas escolhas e encarar, principalmente, o que eu acho de mim mesma.

Ter responsabilidade sobre mim significa ser responsável pela forma como eu me enxergo, e assumir, todos os dias, a não responsabilidade sobre como as outras pessoas me enxergam.

Ter me envolvido com o Cadu me fez, ainda, perceber que ter responsabilidade sobre o nosso relacionamento também me faz ter responsabilidade sobre minhas finanças, minha saúde, minha família. Me fez ser uma pessoa tão responsável que cada dia fica mais fácil assumir a não-responsabilidade sobre a opinião alheia, em qualquer um dos assuntos da minha vida.

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Foto: Maldonado – Uruguay

Vitimice

Não é que eu estou estou me fazendo de vítima, eu só acho que é injusto isso ter acontecido.

Porque, sabe, não é que as coisas não saem como eu quero, mas seria muito melhor se fosse assim do que assado. Não entendo porque isso aconteceu, parece que eu só atraio problema nessa vida.

As coisas sempre dão certo com todo mundo. O fulano tá ganhando dinheiro, a ciclana tá feliz no trabalho, a fulana se mudou pra Nova Iorque, mas eu, não. Parece que sou a única pessoa no mundo que não consegue viver em paz e ser feliz. Que saco!

Antes parecia tudo mais fácil, não é mesmo? As coisas iam acontecendo, e fluindo… Por que será?

Começo dizendo que é por causa do padrão de vítima. Viver em estado de vitimice é viver achando que tudo lá fora é o culpado do problema, e que o “mundo” vive contra nós. É botar a culpa lá fora, ficar procurando um alguém para apontar o dedo, e mudar de humor com base no que acontece ao redor.

Há uns dois anos, aprendi que a “a saída é pra dentro”. Entendi dentro como sendo (literalmente) dentro de mim, do meu ser, da minha alma, da minha mente. Enquanto que fora é o mundo fora de mim. Aquilo que não está dentro do meu ser, ou seja, o mundo físico, visual, genético, epigenético…

A vítima, ela depende dos acontecimentos lá fora. Ela fica feliz se algo de bom acontece, e fica triste se algo de ruim aparece. Ela sai daqui de dentro, se desconecta da alma – que é só bem-estar – e permanece apoiada pra fora da janela.

Sem perceber que, até certo ponto, ela mesma é responsável por criar as coisas lá fora, a partir do que vem aqui de dentro.

Sem entrar no conceito do 100% de responsabilidade, que é só pros fortes de coração, eu chuto com precisão que a resposta se encontra no padrão de vítima. Que tudo depende de como eu escolho ver/viver a vida: sendo uma vítima à mercê do que cai no meu colo, ou escolhendo, de antemão, como eu quero me sentir daqui pra frente, e projetando um futuro feliz pra mim.

É como se fosse aquela pessoa que reclama que não tem ovo em casa, mas não sai pra comprar uma caixa. Que não gosta do que faz, mas trabalha no banco há 10 anos. Que sabe que o/a parceiro/a não é bom, mas o/a ama demais pra deixá-lo e ser mais feliz que aquilo. Que tá sem dinheiro, mas tem medo de arriscar algo novo. Que…

Basicamente, que prefere continuar no conforto do desconforto, do que buscar o desconforto de um futuro conforto. E que, claro, tem argumento pra cada um desses tais desconfortos.

Estamos todos no mesmo barco. A sociedade que nos condiciona e nos educa para crescermos achando que é normal/legal agir em estado de vítima (que nem essa frase)

Mas, meu amigo, deixa eu te contar uma coisa. Quando a gente sai do vitimismo, uma coisa mais legal que a outra acontece. Abre-se espaço para a imaginação e para a chegada de coisas incríveis & maravilhosas & sensacionais. Já posso até sentir. A alma tem voz pra cantar e, com nossa estabilidade emocional no saldo positivo, trazer mais e muitas positividades. É o tal do good vibes only

E pra sair do estado de vítima, basta se perguntar: qual a lição que isso quer me ensinar? O que devo aprender com isso? Depois, é só seguir em frente.

Já ouviu a palavra do #goodvibesonly hoje? Bora olhar pra dentro e se comparar consigo mesmo! Nada de olhar pro lado, nem de se apoiar pra fora da janela. Bora se limpar do padrão de vítima e começar a assumir as devidas responsabilidades.

Como já diziam os antigos: a vida é bela, nóis que fode ela.

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Foto: Gordon’s Bay, Sydney – Australia