Era uma vez, Aquiles.
Um homem forte e belo, imponente, majestoso. O herói mais temido por Tróia, protagonista entre os céus e oceanos, dominador, e guerreiro destaque da Ilíada.
Aquiles vivia armado, pronto para qualquer batalha. Se alguém ousasse lhe enfrentar, Aquiles sacava suas armas e derrubava o inimigo no mesmo instante. Ele sabia usar e dominava com perfeição a munição mais poderosa já inventada pelo homem:
Palavras.
Aquiles sabia exatamente o que falar e como falar para acabar com seu oponente toda vez que fosse preciso. Bastava se sentir ameaçado, que palavras mágicas de dor e ofensa saiam de sua boca em direção à ameaça, extinguindo-a por completo em questão de segundos.
E assim ele vivia. Caminhava armado e munido, pronto para ferir qualquer pessoa que tentasse lhe atacar. Ou que ele pensasse que estivesse lhe atacando. Ou que ele interpretasse que a intenção era lhe atacar. Ou que ele sentisse que qualquer movimento estranho, mesmo que irreal, seria um ataque.
A verdade é que Aquiles era frágil e sensível. Nem ele sabia, mas, sem sua armadura, ele não era nada além de um homem comum. Uma pessoa que sente coisas e emoções, pensa, senta, levanta, e deita. Come, bebe, chora, e dá risada. Mas, por algum motivo e em algum momento, ele precisou se defender, e sem ter força física suficiente, encontrou nas palavras a forma mais rápida e eficaz de se proteger.
E, de fato, elas são. Palavras são a arte da guerra. Fáceis, não violentas (tem certeza?), delicadas. Aparentemente inofensivas. Poderosíssimas, palavras tem o poder supremo de destruir tudo e qualquer coisa se assim seu mestre desejar. Falar é uma arte a ser dominada, que pode sim ser usada para o bem, mas na guerra, um discurso bem dado, que incite o ódio e convença os soldados a ferir o inimigo, é peça chave para vencer uma batalha.
“A vida é uma batalha / Tem que batalhar para vencer na vida / Todo dia, uma batalha diferente” – tão conhecidos “ditados” populares. Frases comuns, repetidas por gerações, que refletem como as pessoas enxergam a vida. “Viver” é, muitas vezes, considerado sinônimo de batalha.
E, na vida, todos somos Aquiles. Caminhamos munidos, sem cuidar daquilo que sai de nossas bocas no meio de uma conversa. Sem se preocupar em entender o que realmente foi dito, se feriu alguém, ou se vale mesmo a pena revidar (não, não vale).
Além disso, no jogo da comunicação, toda regra é exceção. Uma palavra ou frase mal interpretada e não bem esclarecida já vira ataque iminente, que requer revidação na hora. E dá-se início ao pingue-pongue: vence quem sair mais ferido da partida.
Aquiles só foi descobrir o real poder de sua munição quando percebeu uma flechada atingir o seu calcanhar, que, por um descuido, tinha ficado descoberto sem a armadura. Acontece que seu inimigo Homero, durante a guerra de Tróia, observou Aquiles treinar sua arte das palavras, e decidiu usar o feitiço contra o feiticeiro. Ao perceber o calcanhar exposto, Homero direcionou as ofensas e escancarou à Aquiles suas falhas, seus defeitos e dificuldades, derrubando-o em um único golpe.
Falar, a arte da guerra. Palavras são lançadas, e palavras são retornadas. O que Homero descobriu foi que, tanto para atacar ou se defender, falar durante a guerra leva à uma batalha sem fim. Homero não sabia, mas toda a vez que se usa o feitiço das palavras em prol da dor, a armadura de quem o lança fica mais rígida e pesada. Perde-se a sensibilidade, o contato com a pele, com as emoções, com a leveza natural da vida.
Ambas as partes saem perdendo.
Além disso, ele descobriu que armaduras feitas de palavras são falhas, pois os calcanhares sempre acabam ficando de fora. Não só o de Aquiles, mas o tendão de qualquer pessoa, por ser o maior tendão do corpo humano, quando atingido, desestabiliza o esqueleto inteiro, abala o emocional e a dor vira visceral.
Palavras constroem, confortam e acalentam. Mas palavras destroem, nutrem a dor e machucam de verdade. Todo calcanhar é frágil e vulnerável, e está exposto aos ataques de Homero (assim como este aos ataques de Aquiles).
Ao cair, Aquiles percebeu que sua armadura de nada o protegia. Então resolveu tirá-la, eliminando todo o peso sobre seu corpo, e conseguindo assim levantar. Tomou um susto, pois, quando levantou, estava maior que Homero. Mais alto, ainda mais forte, belo e poderoso.
Ele pôde finalmente sentir o quão leve é caminhar sem estar munido e o quanto havia dominado errado a arte da fala. Se perdoou por ter deixado seu calcanhar vulnerável todos esses anos, e trabalhou para fortalecê-lo e protegê-lo de outras formas.
E, no final, descobriu nas palavras, a arte da cura.
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Foto: Milford Sound – New Zealand