O sabor de caminhar com as próprias pernas

O sabor de caminhar com as próprias pernas

De não ser filho de ninguém

De não conhecer alguém

De se meter em uma área que se tem um total de 0 contatos

Ninguém pra pedir conselho, ajuda, indicação.

O sabor de não ganhar nada na mão.

O sabor de não ser fácil, de se sentir pra trás, incapaz

O sabor de um pão no débito e outro sonho no crédito

Meu Deus, o sabor de construir algo sozinho.

Com a força da mente, um coração intensionado, e uma paixão ardente.

O sabor de não sossegar por menos, de se virar nos 30, de chorar mas aceitar

De trabalhar incansavelmente, e seguir em frente.

Que privilégio ter passado tanto perrengue!!!

Quem também sente?

O. sabor. de. crescer. no escuro. é. inigualável.

De ninguém, na intimidade, realmente saber o struggle de verdade

E então, de chegar o momento, olhar pra trás e ver a distância percorrida

A minuciosidade com que a obra foi esculpida

A grandiosidade do que se foi criado aqui dentro

A beleza de ser um só com a vida

O orgulho de ser o artista

O momentum de sentir o art de vivre no canal

Meu Deus, o gosto de construir com as próprias mãos,

pura e simplesmente,

é realmente opulente.

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Foto: Paris, França.

Sorte existe?

Só eu sei

O que eu passei

Pra chegar até aqui.

Pra chegar? Aonde?

Rosto bonito, quem vem lá. Carrega um saco de areia e um pilão pra moer semente de mostarda.

Parece que nada faz sentido até sentir.

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Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“É hoje, abre a porta que a sorte chegou.”

Dona Sorti entrou com tudo pela porta. Toda esbelta e elegante, vestia um casaco de pele de morcego e brincos de diamante 8 quilates. Um raio de sol refletia em seu par de orelhas, mostrando que aquela mulher não era qualquer senhora.

“Bon jour mademoiselle, hoje é seu dia de sorte”, disse a velha enquanto levantava os braços e encarava a janela atrás da anfitriã.

Persiene, sem entender nada, serviu-lhe uma xícara de chá e, abismada, permaneceu calada.

Dona Sorti então começou a caminhar pela casa, observando tudo como quem não quer nada. Mexeu aqui, vasculhou ali, abriu todas as gavetas do cômodo até encontrar o bendito documento.

“Aha! Aqui está seu presente!”

A velha então mostrou a Persiene um anel de pedra-sabão que retirara de uma caixinha no fundo do armário da TV. Era pesado, mas o sentimento ao colocá-lo em seus dedos era de leveza e alegria.

“Estava aí o tempo todo?”, perguntou a moça.

“Sim. E não.”, disse a Dona. “O meu presente sempre esteve guardado aqui, mas você nunca iria encontrá-lo pois estava fora do seu campo de visão.”

Sorti então começou a explicar porque Persiene nunca teria enxergado o anel se não tivesse ficado tanto tempo sem ele. Andando de um lado pro outro de forma animada e espalhafatosa, a velha lecionava à jovem quão importante e essencial foi a atitude da moça de assumir responsabilidade.

“O meu papel”, disse ela, “é servir como uma justificativa para aqueles que não tem nenhuma para dar em troca, e presentear aqueles que têm”.

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Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“Senhora, temos uma reclamação no condomínio. Seu cachorro fez suas necessidades no tapete do vizinho novamente.”

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Foto: Sydney, Australia

Entrevista de Emprego

“Então, Cleiton, conte-me mais sobre você.”

“Hmm, o que o senhor quer saber?”

“Quem é você?”

“Como assim quem sou eu?”

“Ué, qual seu nome? Idade, sexo, endereço. Hobby! Tem hobbies? O que você faz no tempo livre? Na verdade eu não ligo, por que você se inscreveu nessa vaga?”

Porque eu tenho 20 e poucos anos sem dinheiro falido pobre vivendo à custas de vento querendo ter um padrão de vida do chefe dessa empresa que é filho do dono da empresa e que saiu da fralda ganhando 20 mil reais por semana?

“Então, Cleiton, conte-me mais sobre você. Quem é você e por que se inscreveu pra essa vaga?”

“Tirando o fato de que eu não faço ideia de quem eu sou ou do que eu gosto e encontrei essa vaga no google com o título “salário promissor”, eu amo os valores dessa empresa e me identifico muito com a vaga. Sou trabalhador, homem honesto, dedicado e acredito ser o candidato ideal para o que o senhor tá procurando.”

“Cleiton, queremos saber se o seu perfil está alinhado com os planos da empresa e se há realmente um futuro pra você aqui dentro. Aonde você se vê daqui 10 anos?”

Olha moço, o senhor tá achando que eu sou o quê? Mãe Dináh? O brasileiro não tem um dia de paz e você tá me perguntando aonde eu me vejo daqui 10 anos? No fogo do inferno se tu me fizer pensar sobre isso.

“Ah! Daqui 10 anos eu me vejo trabalhando na ONU como Agente de Paz no Uzbequistão, ou sendo CEO de uma grande empresa, como o Facebook, sabe?”

“Legal, Cleiton! Parece estar alinhado com as pessoas que estamos procurando mesmo. Só tenho uma dúvida: aqui na sua Carta de Motivação, quando se inscreveu na vaga, você disse que estava ansioso para trabalhar como contador, mas nós somos um escritório de advocacia. Queria entender, houve algum engano?”

PQP. Que merda! Eu sabia que não deveria ter usado a mesma carta de motivação pras 500 vagas aleatórias que encontrei na internet. Como fui achar que mudar só o nome da empresa iria ser suficiente? Estagiário FDP que não tinha nada pra fazer e leu minha carta com calma. E ainda avisou o chefe!!

“Nossa, senhor, me desculpa. Deve ter escrito por engano. A verdade é que estou extremamente ansioso para trabalhar 12 horas por dia como advogado júnior ganhando 1.000 reais sem vale transporte nem vale alimentação assinando petição e levando cafézinho pro senhor! Quando eu começo?”


Quem somos nós e porque nos inscrevemos em vagas? Quem sou eu?

Eu achava que era A, mas agora acho que sou B. Queria ser A, tentei, mas algo me disse que eu queria ser B. Tentei ser A por um tempo (e fui), mas não me imaginava sendo A daqui 10 anos.

Daqui 10 anos, ser B parece bem mais legal. Eu sempre quis ser B, será que vou esperar 10 anos pra me torna-lo?

Nada impede que a crise venha depois, mas, na maioria das vezes, a crise dos 20 e poucos anos – que começa nos 17 – é doida e sorrateira. Por um momento, a gente consegue ignorar e fingir que nada tá acontecendo, mas de repente ela vem que nem um furacão derrubando tudo que tá na frente: que que eu quero fazer da vida?

Independente da renda financeira, cor de pele, ou gênero. mesmo se em diferentes nuances e às vezes com tópicos ou temas diferentes, todo jovem adulto enfrenta internamente essa crise.

Eu acho que só há uma maneira de enfrentá-la: Encarando-a. Aceite, viva, sinta, se questione, descubra!

Antes da pergunta brotar, a gente começa a perceber a infinidade de opções que se existe pra fazer da vida. É tanto, mas tanto trabalho diferente e maluco que existe por aí, que a gente fica mais perdido que barata tonta. Mas e se eu NÃO quiser fazer nada da vida?

É louco também dar um shift e mudar de vida totalmente. Quanto mais cedo melhor, mas nada impede que isso aconteça quando eu tiver 56 anos.

Na-da impede.

Não vou nem continuar pra não te deixar doido. Mas isso é coisa de se ficar maluco. Provavelmente terão mais textos como esse, mas por enquanto vamos todos compartilhar a dor do Cleiton de passar por mais um entrevista de emprego com a pergunta: por que se inscreveu pra essa vaga?

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Foto: Ghent, Bélgica.

Ménage à quatre

Eu não falo francês ainda pra saber se é verdade ou não, mas, de acordo com o oráculo Google, “ménage” significa 1. domicílio familiar, moradia, lar e 2. o conjunto de tarefas rotineiras e afazeres relacionados com a casa. Mantenha isso em mente.

Também de acordo com o Google, “indivíduo” significa não dividual, indiviso. Mas isso é mentira e eu posso provar.

Imagine você que Beyoncè e Jay-Z são pessoas reais e cheias de crise existencial como qualquer um de nós. Que eles são um casal normal, vivem escondidos nas profundezas da vida social normal de qualquer tiozão casado com filho com sonhos ainda não alcançados, e que ainda não descobriram a fórmula secreta que mistura beleza + dinheiro + fama + não necessariamente felizes + habilidade surreal pra cantar.

Imagine que Beyoncè tem uns 20 anos e conheceu Jay-Z em um rolê normal em uma festa universitária qualquer e crie seu encontro romântico perfeito a partir daqui. Os dois começaram a flertar, tudo são flores, declaração de amor no Face, pegação constrangedora na festa de família etc. Nada que um começo de namoro de outros casais apaixonados por ai não tenha tido.

O tempo passa e os dois continuam tendo um relacionamento amoroso. Se formam na faculdade e, um tempo depois, vão morar juntos.

Beyoncè e Jay-Z são duas pessoas individuais que, juntos, formam um casal. Para se formar um casal, no mínimo, precisa-se de duas pessoas. Mas, na verdade, a Beyoncè sozinha já é duas pessoas, e Jay-Z sozinho já é duas pessoas.

Juntos, eles são quatro pessoas. Wut?

O meu namorado na vida real – que não é o Jay-Z – costumava reclamar que, além de me namorar, ele namora também a minha “cabeça” (como se eu não tivesse que namorar a dele, né, mas ok). Ele reclamava que ele namorava eu & também minhas inseguranças. Que quando a gente discutia, ele tinha que conversar comigo & com meus pensamentos de dúvida/insegurança que voltavam de vez em quando.

Muitas vezes (eu diria sempre), brigas não são entre os dois indivíduos que formam o casal. Brigas podem ser entre a própria Beyoncè e suas inseguranças, que se externalizam em um evento aleatório de conflito com Jay-Z (que pode ficar inseguro e brigar com seus pensamentos também).

Um relacionamento de duas pessoas é, na verdade, um relacionamento entre quatro. Minha Alma & Meu Ego + A Alma Dele/a + O Ego Dele/a.

Morar junto, então, é um verdadeiro ménage. Ménage à quatro, uma mistura de tarefas domésticas, uma mistura de dois indivíduos individuais com inúmeros afazeres rotineiros e que juntos formam um lar.

Independente de que idade ou sexo seja você ou seu parceiro/a, estar em um relacionamento com outra pessoa é estar em um relacionamento com a cabeça dela também. Com as lutas e inseguranças dela também. É saber que, quando ela estiver brigando com você, na verdade vai estar brigando com a outra parte dela mesmo.

Indivíduos são sim divisíveis. Uma hora eu posso ser minha parte positiva, e outra hora eu posso ser minha parte negativa. E o lado positivo somado ao negativo forma um ser só, fisicamente.

Principalmente agora que Beyoncè e Jay-Z moram juntos, eles vão ter que entender que um vai namorar a insegurança do outro. Vão ter que aprender a se respeitar, a abrir espaço para a individualidade dupla de cada um, e se virar nos trinta pra fazer dar certo esse ménage à quatre.

É… complexa essa história de relacionamento amoroso.

Imagina fazer um ménage à quatre à troi?

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Nota da escritora: para qualquer pessoa que estiver lendo isso, principalmente o meu namorado atual que eu gostaria que fosse mas não é o Matthew McGonaughey: ajude em casa!!! Se você usa a sua casa tanto quanto o seu parceiro/a, divida e *cumpra* suas tarefas domésticas! Bjs 😉

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Foto: Praia da Gamboa, Bahia – Brasil

Ter responsabilidade inclui não ser responsável

Olá, meu nome é Karina, tenho 24 anos, sou estudante de farmácia e moro em Jacarandá. Sou amiga da Kelly. Ah, eu acho que ela deveria ter feito diferente. Estava conversando com uma amiga e nós duas achamos que a Kelly está errada.

Oi, me chamo Cilene, tenho 28 anos, trabalho com tecnologia, moro em Jacarandá. A Kelly é minha irmã de alma, e nos conhecemos através do trabalho. Mas faz uns dois meses que não falo com ela. Pois é, nem eu entendi a Kelly. Namoro há 5 anos e nunca foi tão rápido que nem ela…

Eai, meu nome é Cassiano, conheci a Kelly através de rolês. Ela é sangue bom, pô, gente boa. Ah, sou designer, daqui uma semana faço 23 anos, e moro em Jacarandá, no mesmo bairro que a Kelly. Acho que cada um devia cuidar da sua própria vida. Acho que a Kelly mandou bem.

Meu nome é Róger, estudei a vida inteira com a Kelly e sempre fomos amigos. Tenho um carinho por ela mas não nos vemos há anos. Eu sou de Jacarandá mas hoje moro em Milão, tenho 27 anos e sou estilista. Deixa a garota ser feliz!

Oi, sou a Denise, tenho 25 anos e não lembro direito como eu conheci a Kelly. Acho que da vida, somos da mesma cidade. Mas tenho ela no instagram e sempre vejo os stories que ela posta. Ela terminou com o namorado, né? Ouvi dizer que estava grávida mas o cara não quis assumir. Coitada.

Oi, eu sou a Kelly, tenho 24 anos, e moro em Jacarandá, capital de Cidreira. Trabalho com T.I. e acabei de ser promovida na empresa. Tô feliz porque com esse aumento consegui alugar uma casinha pra mim perto dos meus pais e vou conseguir estar mais presente na família. Em geral, a vida tá bem. Acabei de fazer um check-up e minha saúde está ótima.

Também conheci alguém. Mas não é qualquer pessoa, é um amor diferente. Que me faz diferente, que me faz mais feliz.

Descobri recentemente que meu ex me traía. Ele é lindo, o típico galã de novela, cheio de amigos e conhecido da galera. Ele me fazia rir. Namoramos dois anos. Até que um dia recebi uma mensagem dele dizendo que estava noivo e que não podíamos ficar mais juntos. A (outra) namorada dele, que mora há uns 500km daqui, ficou grávida e eles resolveram formar uma família.

Fiquei devastada por umas duas semanas. Até começar uma aula de inglês. Até conhecer o meu professor de inglês. Foi amor à primeira vista, não sei explicar. Nunca senti isso antes.

Ele se chama Cadu, é separado, tem 33 anos, é professor e tem um filho de 5 anos. Ele é um paizão, e a criança é um amor. A mãe é presente, mas casada com outro homem. Todos ali se dão bem e se respeitam. Ele me respeita muito, e nossa aproximação foi muito natural.

Mas ele é fora do ciclo da galera. Tem gente que me apoia, mas a maioria do pessoal acha que eu estou desesperada há procura de outra pessoa, porque faz só três meses que levei um pé na bunda. O pessoal me julga porque já conheci o filho dele, porque ele é mais velho, porque sou interesseira, porque sou sei lá mais o quê.

Eu sei que, olhando de fora, pareço irresponsável. Mas eu tenho consciência do que eu tô fazendo e do que estou sentindo. Eu consigo ver diferença do meu antigo relacionamento para o atual. Eu consigo perceber o quão feliz estou e o quão bem melhor o Cadu me trata. Eu escolhi, de forma consciente, deixar acontecer tudo o que está acontecendo.

Eu tenho responsabilidade sobre os meus atos. O que eu não tenho responsabilidade, entretanto, é do que os outros vão pensar de mim. Eu não sou responsável nem pelo que falam de mim, nem pelas diferentes versões da minha história, nem por quem sabe sobre a minha vida, nem pelos julgamentos que se espalham sobre quem eu sou.

Ter responsabilidade sobre mim significa assumir a não responsabilidade sobre o que os outros pensam de mim.

No fundo todos já sabemos disso. Eu nasci ouvindo que não é para eu me importar sobre o que os outros falam ou pensam sobre a minha pessoa. Mas botar isso na prática é ooooooutra história.

Tudo isso que está acontecendo me fez pensar bastante. Ter me envolvido com o Cadu mudou a minha vida e me fez tomar diversas decisões em relação ao meu futuro. Me fez ser mais forte, bancar as minhas escolhas e encarar, principalmente, o que eu acho de mim mesma.

Ter responsabilidade sobre mim significa ser responsável pela forma como eu me enxergo, e assumir, todos os dias, a não responsabilidade sobre como as outras pessoas me enxergam.

Ter me envolvido com o Cadu me fez, ainda, perceber que ter responsabilidade sobre o nosso relacionamento também me faz ter responsabilidade sobre minhas finanças, minha saúde, minha família. Me fez ser uma pessoa tão responsável que cada dia fica mais fácil assumir a não-responsabilidade sobre a opinião alheia, em qualquer um dos assuntos da minha vida.

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Foto: Maldonado – Uruguay

Entrou o vento suli

Alma livre, leve e solta, feliz e curtindo a vida. Sem apegos, sem amarras. Evoluindo de uma aventura para a outra. Eu que decido a direção do meu barco, mas deixo o vento me guiar e adaptar a minha rota. Até o destino final.

Resiliência. Wanderlust? Não existe destino final, a gente nunca vai chegar “lá”. Toda vez que eu chego em algum lugar, descubro um lugar novo que eu quero chegar. Como eu disse, não tenho tempo pra viver a mesma vida durante uma vida toda. Sem tempo, irmão!

É aquela coisa: o tempo perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu pro tempo, que não tem tempo pra dizer pro tempo, que o tempo que o tempo tem, é o tempo que o tempo não tem.

Se nem o tempo tem tempo, como que EU vou ter tempo?

A única coisa que eu sei que eu tenho, é tempo para respirar.

A passagem de um ciclo para o outro se chama vazio. E o vazio nada mais é que a ausência de matéria. No vazio só tem ar (eu acho, se não for cientificamente correto, entra na metáfora). E como viver uma vida sem ar pra respirar?

Mas o vazio é louco porque ele claramente indica o fim/início de um novo ciclo. E, principalmente para quem não está consciente disso, dói.

Dói pra todo mundo essas mudanças de plano radicais, mas acho que ainda mais para quem tá dormindo no ponto. Vai tomar um susto quando acordar.

Estar consciente durante o vazio, só respirando, não-tem-preço. É um momento de pura gratidão. Gratidão pelo que passou, pelo que está passando, e pelo que ainda irá passar – Passar -. Já dizia Nx Zero: na vida tudo passa, não importa o que tu faça.

Mudanças de plano inesperadas nada mais são do que adaptações de rota. E elas vão se adaptando de acordo com o que o vento mandar. Talvez aquela sempre fosse a rota, mas se hoje o vento tá mais forte, vai ter que adaptar mais cedo que o planejado.

Se for o vento sul então, corre que em cinco dias o caminho já mudou pro outro lado. Ele continua na mesma direção, mas o trajeto já é outro. É o tal do vento suli, mô kiridu, esse fax côza.

E que bom. Que bom que ele faz coisa. Que bom que ele dá esse empurrãozinho. Vem limpando tudo que tem que ser limpo, e trazendo novos ares, novos olhares, novas aventuras!

De mochila nas costas, vou andando pela vida.

Eu que decido a direção do meu barco, e eu me adapto conforme o vento. Durante o trajeto, vou parando para apreciar a paisagem, explorar ilhas desertas, sentir novos sabores. Refletir, me sentir, me recarregar.

E partir pra próxima!

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Foto: Utrecht – The Netherlands

O burnout não fica em quarentena

Mulher sempre acha que é a Mulher-Maravilha, né? Eu sempre achei. Temos até o mesmo nome! Eu sempre me identifiquei muito com a Mulher-Maravilha porque assim, temos o mesmo nome, e ela é uma maravilha. Mas será que ela também opera em luta-fuga?

Lava, seca e passa. Cuida das plantas, faz o almoço, lava o box do banheiro, medita. Pinta, costura e pratica yoga três vezes ao dia virada pro sol em um ângulo de 38 graus perpendicular à lua. Por quê será que associamos essa maravilha de mulher com uma mulher maravilhosa?

Tem aquela clássica história pra boi dormir de que mulher consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo mas homem não. Homem só consegue fazer uma. Ele não consegue, por exemplo, recolher o prato que comeu ao mesmo tempo que faz a digestão, porque é do homem só conseguir fazer uma coisa ao mesmo tempo. Ainda bem que a mulher consegue cozinhar, servir o prato, mastigar, engolir, e ainda lavar a louça ao mesmo tempo, porque se dependesse do homem, tão limitado, coitado, ficaria complicado…

Lá vem ela trazendo as boas novas. Tá grávida de cinco meses, semana que vem está partindo para uma expedição de escalada do Everest, começou a dieta paleo e, de acordo com a nutri, a prática de jejum intermitente tem sido maravilhosa para aumentar os níveis de antioxidantes no sangue e dar a energia necessária para um dia agitado!

A vida tem sido boa demais, diz ela. “Só no trabalho que está um pouco complicado. Meu departamento trocou de chefe, e esse é bem mais rigoroso. Me pediu uma planilha completa para calcular o número de gotas do oceano, que tá me dando um pouco de trabalho. Mas fora isso, tô bem!”

Das oito horas de expediente, duas eu produzo pra valer. As outras seis, eu passo tentando me concentrar para não pensar nas outras mil coisas que eu tenho pra fazer, diz ela. Que quero fazer, que deixei de fazer, que fiz, que pensei em fazer mas não fiz.

Será que a Mulher-Maravilha, minha xará, também opera em luta-fuga que nem eu? Que nem você?

Graças à Deus já to bem mais avançada nessa caminhada ao reparo, descanso e digestão. Já operei muito mais no modo sobrevivência, mas hoje a minha busca é pela vivência. Não faz sentido esse modo de ver a vida de que trabalho é tudo nesse mundo. Trabalho é sim tudo nesse mundo, é sim algo lindo e que deve ser amado, mas ele não é tudo nesse mundo! Trabalho é incrível e traz propósito de vida, mas ele só faz parte do meu mundo.

Dá um google em “karoshi” e depois volta pra gente conversar.

E aí, vai me dizer que karoshi tira férias? Que faz escolha de gênero? Idade? Profissão? Que fica em quarentena? Nem ele nem o burnout.

Hoje eu me peguei em um ciclo autodestrutivo de alta exigência de produção com níveis mais altos ainda de esgotamento. Longe do burnout mas com o pé apontado em direção. E se eu to me sentindo assim, nem imagino como outras pessoas possam se sentir.

Nós, mulheres que se dizem ser a Mulher-Maravilha, a diferentona stress-free, cuidado. Você não quer ser ela. Primeiro que eu nem sei porque a associam com uma faz-tudo super poderosa (alguém aí sabe?), e, segundo, porque presença é o mínimo de respeito que podemos nos dar.

Eu que me perdoe por estar tendo oportunidades absurdamente incríveis neste momento e não estar presente em nenhuma delas. Eu que me perdoe por não estar presente para me enxergar me tornando a mulher dos meus sonhos. Eu que me perdoe por não ter presenciado antes a minha clara exaustão. Mesmo tendo – literalmente – todo o tempo livre (alô, quarentena), nas últimas semanas eu estava ocupada demais para marcar presença naquela nova conquista.

Amanhã o despertador não toca.

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Foto: Florianópolis – Brasil

Torre de Babel

Come in, welcome! Vorrei un caffè, per favore. Café avec ou sain sucre? Pode ser sem açúcar, por favor. Oggi fa caldo, vero? Pois é, ouvi dizer que o sol entrou em combustão e partículas de estrela se espalharam por aí. Que loco todo esto.

Dois camundongos caminhavam pela rua. Um olhou pro outro e disse: “Eaí, já conversou com as estrelas hoje?” O segundo camundongo, espantado, respondeu: “Cumé? Conversou com as estrelas?”

“É. Olha pra elas e pergunta como elas fazem pra brilhar tanto. Todo dia eu faço isso, e todo dia elas me dão uma ideia diferente, apesar de nunca darem a resposta completa”. O outro animal, curioso que só vendo, decidiu então experimentar. Mirou a estrela mais brilhante daquela noite, fechou os olhos, e pensou na seguinte pergunta: “Como eu faço pra brilhar?”

Shine like a star, respondeu ela. “Tem que ser estrela pra brilhar”, entendeu ele.

Não importa quantas vezes o camundongo perguntasse, e a estrela respondesse, ele nunca estava satisfeito com a resposta. Achava que ela nunca o respondia, pois não o compreendia. Talvez falasse um idioma diferente, pensou ele. Porque a resposta nunca vinha no estilo “Para brilhar você deve fazer X, Y e Z”.

Qual resposta ele queria? Qual pergunta ela entendia? O que a estrela queria dizer, qual a mensagem que o camundongo queria passar? O que ela queria entender? O que ele queria expressar?

Assim é a vida. Comunicação. Expressão. Diferentes pessoas se comunicam diariamente. De diferentes maneiras. Diferentes ideias, sentimentos, momentos de vida, pensamentos. Diferentes pensamentos. Diferentes visões de mundo. Crenças variadas.

Como fazer com que D se comunique com W? E que W, que nasceu na Paraíba, entenda o que D, que nasceu nos Pampas Gaúchos, quer dizer? Como fazer com que A, que virou skatista, faça com que B, seu irmão violinista, entenda quando ele conta da manobre Ollie 180 que conseguiu semana passada?

A estrela respondeu o camundongo. Ela disse “brilhe como uma estrela”. Ela disse -como- ele tem que fazer pra brilhar. Mas não disse com as palavras que ele queria ouvir. Então o camundongo não entendeu. Não quis entender. Entendeu que só brilha quem é estrela. Deve ser o idioma, pensou ele. Deve ser a hora do dia, a religião, a cor de pele. Mas eles estavam falando a mesma coisa!

O camundongo vê o mundo de baixo, da terra. A estrela vê o mundo de cima. Lá do alto. A perspectiva dela é diferente. Não é melhor nem pior, só diferente. Mas ambos enxergam a vida de formas opostas. Mesmo assim, eles estavam falando do mesmo assunto.

Todo cuidado é pouco na hora de se comunicar. É uma crença pessoal, mas eu acredito que em todas as conversas, cada parte sai com um entendimento diferente. Cada um viu aquela situação de uma forma, absorveu o que quis absorver, e levou consigo a mensagem que mais o convinha naquele momento. É complicado. É fácil.

É simples, mas bem complexo.

Nos meus textos, 99% do que eu quero dizer não é compreendido. A pessoa mais próxima possível de mim não entendeu a mensagem que eu quis passar em um texto que eu tinha 99% de certeza que ela, pelo menos ela, ia entender. E assim é a vida. Não importa quem seja, vai ter falha na comunicação.

Essa é a graça da vida. Infinitas possibilidades existem no momento que eu me expresso. Infinitos entendimentos, lições, ensinamentos, pensamentos. Infinitos resultados e sentimentos. Não tem fim, são infinitas possibilidades. Toda vez que o camundongo falar com a estrela ela vai responder algo diferente. Ela vai dar a mesma resposta, mas ele vai entender o que ele quiser, dependendo do corte de cabelo que estiver usando, do mood do dia, da fase musical, do momentum da vez.

A tal da Torre de Babel. Como fazer com que eu te entenda? E que você me compreenda? Difícil essa, hein…

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Foto: Portofino – Italia

O social distancing é bom.

“Sim sim, já estou indo. Só vou acabar aqui essa cerveja e já vou embora.”

“Mas já?”

“Sabe o que que é, tem gente me esperando. Tenho outras vidas pra passear e outros ensinamentos pra compartilhar.”

“Ah, então tá. Obrigada pela visita. Foi muito bom estar com você durante esse tempo. Aprendi bastante, mas agora a gente já é diferente. Fique à vontade pra voltar se quiser, senão te acompanho de longe. “

O social distancing é bom, ele existe desde sempre, e nunca vai deixar de existir. E ele não tem -nada- a ver com isolamento social ou internet.

Sabe quando, a gente fala com alguém, e a gente sente? A gente só sente, a pessoa indo embora, a amizade se afastando, as coisas mudando. A gente sente que já não é mais o que foi. Eu sei, sempre muda, mas já não é mais o que era antes.

Esse momento é louco. Diversas pessoas passam pela vida da gente. Diversas pessoas, passam, pela vida da gente. Mas elas passam mesmo, de deixar de estar presente. Elas continuam ali, vivendo a vida delas, mas não fazem mais parte da nossa.

Esse momento é louco. Pra mim dói. Sempre doeu. Lembro de absolutamente todas as pessoas que passaram pela minha vida, e tenho um carinho bizarro por todas elas. Ele acha que eu não lembro dele, ela pensa que eu esqueci quem ela foi. Esqueci, não.

João falou pra Maria que falou pra Pedro que Pedro é o melhor amigo de João. João e Pedro são muito amigos, quase irmãos. Viajam juntos, conhecem a família – e os problemas – um do outro, parece que são amigos desde sempre. Que bom é ter João, disse Pedro.

Pedro entrou na faculdade. Mudou de colégio, começou natação, conheceu Magali. Pedro continuou ali. Mas João cortou o cabelo, se apaixonou por Maria, começou aula de canto e se mudou pra outro bairro. João continua ali. Se esforçando. Os dois. Vamos marcar algo na sexta. Sexta não dá, tem que ser quinta. Quinta vou cortar a unha, tem que ser segunda.

Semana que vem, então. Em novembro. Eu vi ele ontem!

É inevitável. Pedro ama João e aprendeu muito com ele. Tudo que eles viveram foi bom e tá guardado no coração. Mas Lucas tá chegando e João tem que dar licença. Pedro tem que aprender coisas novas, João tem que ensinar outros a jogar futebol. João tem que aprender mais sobre a vida, Pedro tem que ensinar Carlos sobre economia.

É inevitável. É o fluxo natural da vida. Um dá lugar pro outro, um preenche o lugar do outro. Hoje, eu sou quem eu sou, porque tantas pessoas passaram pela minha vida. Gratidão eterna por cada um. Mas espero que tantas outras também passem. Decidi que, em vez de lutar contra, vou aceitar. Receber, agradecer, e deixar ir.

A vida inteira, muitas despedidas foram um luto pra mim. Doeu. Internamente, mas doeu. Mas o social distancing é bom, porque ele é um feedback externo de uma mudança interna. Eu to mudando, ele tá mudando. Ninguém pra melhor ou pra pior, são só mudanças.

Agora eu vou pra lá, ela pra cá, e a vida é uma dança. Quem sabe a gente dance junto de novo! Quem sabe tem outros que dancem melhor que eu! Que gostem de samba, ou que prefiram axé. Hoje eu tô na roda de pagode, amanhã é dia de baile funk. Quem vai dançar comigo hoje?

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Foto: Boracay Island – The Philippines

Cara, cadê meu carro?

Chegando em Kalibo, fechamos o olho e apontamos pra uma das 15 vans brancas paradas na frente do aeroporto. Todas iguais. Vai essa mesmo. Sem Zika, seu vírus, teu alerta ficou pra trás lá no saguão. Agora eu tô nas Filipinas.

Duas horas de van até chegar no porto. Durante o caminho, o motorista “pedia” para os 6 passageiros se espremerem enquanto as crianças iam entrando. As aulas do dia tinham acabado e a van escolar também fazia bicos de van pra turista.

Ao som de Bob Marley, um barco me levava pra lugar algum. Acordei de manhã com passagem pra Burma, mas há duas horas estava nas terras de Duterte.

Terra à vista! Aquela palmeira não me engana. Ainda tem uma hora de Tuk-Tuk até chegar no Mad Monkey. Eita, aonde eu tô? Quem é esse senhor que tá me carregando pelo pôr-do-sol mais bem colorido que esse universo já me deu?

Lá é terra, casa simples, barulho. Muito barulho. Quanto barulho se escuta todo dia. Finalmente um silêncio.

“Então, de Itaparica vocês pegam um barco até lá. De lá, são quatro horas de ônibus até a metade do caminho. Depois, pegam outro ônibus e depois um barco. Aí chegou no Morro.

De Moreré, vocês caminham pela praia até encontrar a estação dos tratores. Pega um trator ou um quadriciclo até Boipeba. Daí caminham umas horas e pegam um barco para Barra Grande. De lá, procura alguém que te leva até o Cassange”. Ô mainha, essa Bahia é de rei.

Mas cara, cadê meu carro? Ele, que é minha casa, meu porto seguro, não vai nem carregar minha mochila? Que nada. Me abandonou pra tomar gasolina no bar. Então eu vou de bicicleta. Esse é meu único meio de transporte agora mesmo.

Sem tempo, irmão. Sem. Tempo. Irmão. Eu não tenho tempo pra viver a mesma vida durante uma vida toda. Olha a quantidade de opções que existe por aí. Barco, trator, moto, trem, bicicleta, tuk-tuk (!) Quem sou eu para caminhar só com minhas pernas?

Já recrutei minhas mãos e avisei que da próxima é a vez delas. Eu sou internacionalista e é isso que internacionalistas fazem. Eles não sabem diferenciar mãos de pernas, ônibus de avião. Mas e eu que sou dentista?

Você é humano? Então pronto. Não sabe diferenciar também. Só não aprendeu ainda. A partir de agora, tá liberado se virar com o que tem e viver mais do que não convém.

Eu não sou nada. Eu estou sendo algo. Eu sou tudo. Quando me chamaram pra andar de Jeep nas montanhas deu um buggy no sistema e de início eu recusei. Me assustei. Mas depois entendi. Então é isso que o surfista sente quando anda de skate?

Sabe-se lá qual será meu meio de transporte da próxima vez que a gente conversar. Provavelmente um patinete, porque ainda tenho medo de subir naquele que é elétrico. Mas a verdade é que não importa. Eu ainda vou andar por todos. O fato é que eu achava que precisava de um carro.

Hoje eu nem lembro aonde estacionei. Acho que vendi. Me pagaram em sonhos. Ninguém resiste àquela oferta do dia tentadora né? Compre um sonho e leve dois. “Só hoje, se você levar um abridor de mão da marca Zona de Conforto, você concorre há quatro novas chances de viver algo incrível e quinhentos mil novas possibilidades em retorno”.

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Foto: Boracay Island – The Philippines