Ter responsabilidade inclui não ser responsável

Olá, meu nome é Karina, tenho 24 anos, sou estudante de farmácia e moro em Jacarandá. Sou amiga da Kelly. Ah, eu acho que ela deveria ter feito diferente. Estava conversando com uma amiga e nós duas achamos que a Kelly está errada.

Oi, me chamo Cilene, tenho 28 anos, trabalho com tecnologia, moro em Jacarandá. A Kelly é minha irmã de alma, e nos conhecemos através do trabalho. Mas faz uns dois meses que não falo com ela. Pois é, nem eu entendi a Kelly. Namoro há 5 anos e nunca foi tão rápido que nem ela…

Eai, meu nome é Cassiano, conheci a Kelly através de rolês. Ela é sangue bom, pô, gente boa. Ah, sou designer, daqui uma semana faço 23 anos, e moro em Jacarandá, no mesmo bairro que a Kelly. Acho que cada um devia cuidar da sua própria vida. Acho que a Kelly mandou bem.

Meu nome é Róger, estudei a vida inteira com a Kelly e sempre fomos amigos. Tenho um carinho por ela mas não nos vemos há anos. Eu sou de Jacarandá mas hoje moro em Milão, tenho 27 anos e sou estilista. Deixa a garota ser feliz!

Oi, sou a Denise, tenho 25 anos e não lembro direito como eu conheci a Kelly. Acho que da vida, somos da mesma cidade. Mas tenho ela no instagram e sempre vejo os stories que ela posta. Ela terminou com o namorado, né? Ouvi dizer que estava grávida mas o cara não quis assumir. Coitada.

Oi, eu sou a Kelly, tenho 24 anos, e moro em Jacarandá, capital de Cidreira. Trabalho com T.I. e acabei de ser promovida na empresa. Tô feliz porque com esse aumento consegui alugar uma casinha pra mim perto dos meus pais e vou conseguir estar mais presente na família. Em geral, a vida tá bem. Acabei de fazer um check-up e minha saúde está ótima.

Também conheci alguém. Mas não é qualquer pessoa, é um amor diferente. Que me faz diferente, que me faz mais feliz.

Descobri recentemente que meu ex me traía. Ele é lindo, o típico galã de novela, cheio de amigos e conhecido da galera. Ele me fazia rir. Namoramos dois anos. Até que um dia recebi uma mensagem dele dizendo que estava noivo e que não podíamos ficar mais juntos. A (outra) namorada dele, que mora há uns 500km daqui, ficou grávida e eles resolveram formar uma família.

Fiquei devastada por umas duas semanas. Até começar uma aula de inglês. Até conhecer o meu professor de inglês. Foi amor à primeira vista, não sei explicar. Nunca senti isso antes.

Ele se chama Cadu, é separado, tem 33 anos, é professor e tem um filho de 5 anos. Ele é um paizão, e a criança é um amor. A mãe é presente, mas casada com outro homem. Todos ali se dão bem e se respeitam. Ele me respeita muito, e nossa aproximação foi muito natural.

Mas ele é fora do ciclo da galera. Tem gente que me apoia, mas a maioria do pessoal acha que eu estou desesperada há procura de outra pessoa, porque faz só três meses que levei um pé na bunda. O pessoal me julga porque já conheci o filho dele, porque ele é mais velho, porque sou interesseira, porque sou sei lá mais o quê.

Eu sei que, olhando de fora, pareço irresponsável. Mas eu tenho consciência do que eu tô fazendo e do que estou sentindo. Eu consigo ver diferença do meu antigo relacionamento para o atual. Eu consigo perceber o quão feliz estou e o quão bem melhor o Cadu me trata. Eu escolhi, de forma consciente, deixar acontecer tudo o que está acontecendo.

Eu tenho responsabilidade sobre os meus atos. O que eu não tenho responsabilidade, entretanto, é do que os outros vão pensar de mim. Eu não sou responsável nem pelo que falam de mim, nem pelas diferentes versões da minha história, nem por quem sabe sobre a minha vida, nem pelos julgamentos que se espalham sobre quem eu sou.

Ter responsabilidade sobre mim significa assumir a não responsabilidade sobre o que os outros pensam de mim.

No fundo todos já sabemos disso. Eu nasci ouvindo que não é para eu me importar sobre o que os outros falam ou pensam sobre a minha pessoa. Mas botar isso na prática é ooooooutra história.

Tudo isso que está acontecendo me fez pensar bastante. Ter me envolvido com o Cadu mudou a minha vida e me fez tomar diversas decisões em relação ao meu futuro. Me fez ser mais forte, bancar as minhas escolhas e encarar, principalmente, o que eu acho de mim mesma.

Ter responsabilidade sobre mim significa ser responsável pela forma como eu me enxergo, e assumir, todos os dias, a não responsabilidade sobre como as outras pessoas me enxergam.

Ter me envolvido com o Cadu me fez, ainda, perceber que ter responsabilidade sobre o nosso relacionamento também me faz ter responsabilidade sobre minhas finanças, minha saúde, minha família. Me fez ser uma pessoa tão responsável que cada dia fica mais fácil assumir a não-responsabilidade sobre a opinião alheia, em qualquer um dos assuntos da minha vida.

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Foto: Maldonado – Uruguay

Entrou o vento suli

Alma livre, leve e solta, feliz e curtindo a vida. Sem apegos, sem amarras. Evoluindo de uma aventura para a outra. Eu que decido a direção do meu barco, mas deixo o vento me guiar e adaptar a minha rota. Até o destino final.

Resiliência. Wanderlust? Não existe destino final, a gente nunca vai chegar “lá”. Toda vez que eu chego em algum lugar, descubro um lugar novo que eu quero chegar. Como eu disse, não tenho tempo pra viver a mesma vida durante uma vida toda. Sem tempo, irmão!

É aquela coisa: o tempo perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu pro tempo, que não tem tempo pra dizer pro tempo, que o tempo que o tempo tem, é o tempo que o tempo não tem.

Se nem o tempo tem tempo, como que EU vou ter tempo?

A única coisa que eu sei que eu tenho, é tempo para respirar.

A passagem de um ciclo para o outro se chama vazio. E o vazio nada mais é que a ausência de matéria. No vazio só tem ar (eu acho, se não for cientificamente correto, entra na metáfora). E como viver uma vida sem ar pra respirar?

Mas o vazio é louco porque ele claramente indica o fim/início de um novo ciclo. E, principalmente para quem não está consciente disso, dói.

Dói pra todo mundo essas mudanças de plano radicais, mas acho que ainda mais para quem tá dormindo no ponto. Vai tomar um susto quando acordar.

Estar consciente durante o vazio, só respirando, não-tem-preço. É um momento de pura gratidão. Gratidão pelo que passou, pelo que está passando, e pelo que ainda irá passar – Passar -. Já dizia Nx Zero: na vida tudo passa, não importa o que tu faça.

Mudanças de plano inesperadas nada mais são do que adaptações de rota. E elas vão se adaptando de acordo com o que o vento mandar. Talvez aquela sempre fosse a rota, mas se hoje o vento tá mais forte, vai ter que adaptar mais cedo que o planejado.

Se for o vento sul então, corre que em cinco dias o caminho já mudou pro outro lado. Ele continua na mesma direção, mas o trajeto já é outro. É o tal do vento suli, mô kiridu, esse fax côza.

E que bom. Que bom que ele faz coisa. Que bom que ele dá esse empurrãozinho. Vem limpando tudo que tem que ser limpo, e trazendo novos ares, novos olhares, novas aventuras!

De mochila nas costas, vou andando pela vida.

Eu que decido a direção do meu barco, e eu me adapto conforme o vento. Durante o trajeto, vou parando para apreciar a paisagem, explorar ilhas desertas, sentir novos sabores. Refletir, me sentir, me recarregar.

E partir pra próxima!

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Foto: Utrecht – The Netherlands

O burnout não fica em quarentena

Mulher sempre acha que é a Mulher-Maravilha, né? Eu sempre achei. Temos até o mesmo nome! Eu sempre me identifiquei muito com a Mulher-Maravilha porque assim, temos o mesmo nome, e ela é uma maravilha. Mas será que ela também opera em luta-fuga?

Lava, seca e passa. Cuida das plantas, faz o almoço, lava o box do banheiro, medita. Pinta, costura e pratica yoga três vezes ao dia virada pro sol em um ângulo de 38 graus perpendicular à lua. Por quê será que associamos essa maravilha de mulher com uma mulher maravilhosa?

Tem aquela clássica história pra boi dormir de que mulher consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo mas homem não. Homem só consegue fazer uma. Ele não consegue, por exemplo, recolher o prato que comeu ao mesmo tempo que faz a digestão, porque é do homem só conseguir fazer uma coisa ao mesmo tempo. Ainda bem que a mulher consegue cozinhar, servir o prato, mastigar, engolir, e ainda lavar a louça ao mesmo tempo, porque se dependesse do homem, tão limitado, coitado, ficaria complicado…

Lá vem ela trazendo as boas novas. Tá grávida de cinco meses, semana que vem está partindo para uma expedição de escalada do Everest, começou a dieta paleo e, de acordo com a nutri, a prática de jejum intermitente tem sido maravilhosa para aumentar os níveis de antioxidantes no sangue e dar a energia necessária para um dia agitado!

A vida tem sido boa demais, diz ela. “Só no trabalho que está um pouco complicado. Meu departamento trocou de chefe, e esse é bem mais rigoroso. Me pediu uma planilha completa para calcular o número de gotas do oceano, que tá me dando um pouco de trabalho. Mas fora isso, tô bem!”

Das oito horas de expediente, duas eu produzo pra valer. As outras seis, eu passo tentando me concentrar para não pensar nas outras mil coisas que eu tenho pra fazer, diz ela. Que quero fazer, que deixei de fazer, que fiz, que pensei em fazer mas não fiz.

Será que a Mulher-Maravilha, minha xará, também opera em luta-fuga que nem eu? Que nem você?

Graças à Deus já to bem mais avançada nessa caminhada ao reparo, descanso e digestão. Já operei muito mais no modo sobrevivência, mas hoje a minha busca é pela vivência. Não faz sentido esse modo de ver a vida de que trabalho é tudo nesse mundo. Trabalho é sim tudo nesse mundo, é sim algo lindo e que deve ser amado, mas ele não é tudo nesse mundo! Trabalho é incrível e traz propósito de vida, mas ele só faz parte do meu mundo.

Dá um google em “karoshi” e depois volta pra gente conversar.

E aí, vai me dizer que karoshi tira férias? Que faz escolha de gênero? Idade? Profissão? Que fica em quarentena? Nem ele nem o burnout.

Hoje eu me peguei em um ciclo autodestrutivo de alta exigência de produção com níveis mais altos ainda de esgotamento. Longe do burnout mas com o pé apontado em direção. E se eu to me sentindo assim, nem imagino como outras pessoas possam se sentir.

Nós, mulheres que se dizem ser a Mulher-Maravilha, a diferentona stress-free, cuidado. Você não quer ser ela. Primeiro que eu nem sei porque a associam com uma faz-tudo super poderosa (alguém aí sabe?), e, segundo, porque presença é o mínimo de respeito que podemos nos dar.

Eu que me perdoe por estar tendo oportunidades absurdamente incríveis neste momento e não estar presente em nenhuma delas. Eu que me perdoe por não estar presente para me enxergar me tornando a mulher dos meus sonhos. Eu que me perdoe por não ter presenciado antes a minha clara exaustão. Mesmo tendo – literalmente – todo o tempo livre (alô, quarentena), nas últimas semanas eu estava ocupada demais para marcar presença naquela nova conquista.

Amanhã o despertador não toca.

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Foto: Florianópolis – Brasil

Torre de Babel

Come in, welcome! Vorrei un caffè, per favore. Café avec ou sain sucre? Pode ser sem açúcar, por favor. Oggi fa caldo, vero? Pois é, ouvi dizer que o sol entrou em combustão e partículas de estrela se espalharam por aí. Que loco todo esto.

Dois camundongos caminhavam pela rua. Um olhou pro outro e disse: “Eaí, já conversou com as estrelas hoje?” O segundo camundongo, espantado, respondeu: “Cumé? Conversou com as estrelas?”

“É. Olha pra elas e pergunta como elas fazem pra brilhar tanto. Todo dia eu faço isso, e todo dia elas me dão uma ideia diferente, apesar de nunca darem a resposta completa”. O outro animal, curioso que só vendo, decidiu então experimentar. Mirou a estrela mais brilhante daquela noite, fechou os olhos, e pensou na seguinte pergunta: “Como eu faço pra brilhar?”

Shine like a star, respondeu ela. “Tem que ser estrela pra brilhar”, entendeu ele.

Não importa quantas vezes o camundongo perguntasse, e a estrela respondesse, ele nunca estava satisfeito com a resposta. Achava que ela nunca o respondia, pois não o compreendia. Talvez falasse um idioma diferente, pensou ele. Porque a resposta nunca vinha no estilo “Para brilhar você deve fazer X, Y e Z”.

Qual resposta ele queria? Qual pergunta ela entendia? O que a estrela queria dizer, qual a mensagem que o camundongo queria passar? O que ela queria entender? O que ele queria expressar?

Assim é a vida. Comunicação. Expressão. Diferentes pessoas se comunicam diariamente. De diferentes maneiras. Diferentes ideias, sentimentos, momentos de vida, pensamentos. Diferentes pensamentos. Diferentes visões de mundo. Crenças variadas.

Como fazer com que D se comunique com W? E que W, que nasceu na Paraíba, entenda o que D, que nasceu nos Pampas Gaúchos, quer dizer? Como fazer com que A, que virou skatista, faça com que B, seu irmão violinista, entenda quando ele conta da manobre Ollie 180 que conseguiu semana passada?

A estrela respondeu o camundongo. Ela disse “brilhe como uma estrela”. Ela disse -como- ele tem que fazer pra brilhar. Mas não disse com as palavras que ele queria ouvir. Então o camundongo não entendeu. Não quis entender. Entendeu que só brilha quem é estrela. Deve ser o idioma, pensou ele. Deve ser a hora do dia, a religião, a cor de pele. Mas eles estavam falando a mesma coisa!

O camundongo vê o mundo de baixo, da terra. A estrela vê o mundo de cima. Lá do alto. A perspectiva dela é diferente. Não é melhor nem pior, só diferente. Mas ambos enxergam a vida de formas opostas. Mesmo assim, eles estavam falando do mesmo assunto.

Todo cuidado é pouco na hora de se comunicar. É uma crença pessoal, mas eu acredito que em todas as conversas, cada parte sai com um entendimento diferente. Cada um viu aquela situação de uma forma, absorveu o que quis absorver, e levou consigo a mensagem que mais o convinha naquele momento. É complicado. É fácil.

É simples, mas bem complexo.

Nos meus textos, 99% do que eu quero dizer não é compreendido. A pessoa mais próxima possível de mim não entendeu a mensagem que eu quis passar em um texto que eu tinha 99% de certeza que ela, pelo menos ela, ia entender. E assim é a vida. Não importa quem seja, vai ter falha na comunicação.

Essa é a graça da vida. Infinitas possibilidades existem no momento que eu me expresso. Infinitos entendimentos, lições, ensinamentos, pensamentos. Infinitos resultados e sentimentos. Não tem fim, são infinitas possibilidades. Toda vez que o camundongo falar com a estrela ela vai responder algo diferente. Ela vai dar a mesma resposta, mas ele vai entender o que ele quiser, dependendo do corte de cabelo que estiver usando, do mood do dia, da fase musical, do momentum da vez.

A tal da Torre de Babel. Como fazer com que eu te entenda? E que você me compreenda? Difícil essa, hein…

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Foto: Portofino – Italia

O social distancing é bom.

“Sim sim, já estou indo. Só vou acabar aqui essa cerveja e já vou embora.”

“Mas já?”

“Sabe o que que é, tem gente me esperando. Tenho outras vidas pra passear e outros ensinamentos pra compartilhar.”

“Ah, então tá. Obrigada pela visita. Foi muito bom estar com você durante esse tempo. Aprendi bastante, mas agora a gente já é diferente. Fique à vontade pra voltar se quiser, senão te acompanho de longe. “

O social distancing é bom, ele existe desde sempre, e nunca vai deixar de existir. E ele não tem -nada- a ver com isolamento social ou internet.

Sabe quando, a gente fala com alguém, e a gente sente? A gente só sente, a pessoa indo embora, a amizade se afastando, as coisas mudando. A gente sente que já não é mais o que foi. Eu sei, sempre muda, mas já não é mais o que era antes.

Esse momento é louco. Diversas pessoas passam pela vida da gente. Diversas pessoas, passam, pela vida da gente. Mas elas passam mesmo, de deixar de estar presente. Elas continuam ali, vivendo a vida delas, mas não fazem mais parte da nossa.

Esse momento é louco. Pra mim dói. Sempre doeu. Lembro de absolutamente todas as pessoas que passaram pela minha vida, e tenho um carinho bizarro por todas elas. Ele acha que eu não lembro dele, ela pensa que eu esqueci quem ela foi. Esqueci, não.

João falou pra Maria que falou pra Pedro que Pedro é o melhor amigo de João. João e Pedro são muito amigos, quase irmãos. Viajam juntos, conhecem a família – e os problemas – um do outro, parece que são amigos desde sempre. Que bom é ter João, disse Pedro.

Pedro entrou na faculdade. Mudou de colégio, começou natação, conheceu Magali. Pedro continuou ali. Mas João cortou o cabelo, se apaixonou por Maria, começou aula de canto e se mudou pra outro bairro. João continua ali. Se esforçando. Os dois. Vamos marcar algo na sexta. Sexta não dá, tem que ser quinta. Quinta vou cortar a unha, tem que ser segunda.

Semana que vem, então. Em novembro. Eu vi ele ontem!

É inevitável. Pedro ama João e aprendeu muito com ele. Tudo que eles viveram foi bom e tá guardado no coração. Mas Lucas tá chegando e João tem que dar licença. Pedro tem que aprender coisas novas, João tem que ensinar outros a jogar futebol. João tem que aprender mais sobre a vida, Pedro tem que ensinar Carlos sobre economia.

É inevitável. É o fluxo natural da vida. Um dá lugar pro outro, um preenche o lugar do outro. Hoje, eu sou quem eu sou, porque tantas pessoas passaram pela minha vida. Gratidão eterna por cada um. Mas espero que tantas outras também passem. Decidi que, em vez de lutar contra, vou aceitar. Receber, agradecer, e deixar ir.

A vida inteira, muitas despedidas foram um luto pra mim. Doeu. Internamente, mas doeu. Mas o social distancing é bom, porque ele é um feedback externo de uma mudança interna. Eu to mudando, ele tá mudando. Ninguém pra melhor ou pra pior, são só mudanças.

Agora eu vou pra lá, ela pra cá, e a vida é uma dança. Quem sabe a gente dance junto de novo! Quem sabe tem outros que dancem melhor que eu! Que gostem de samba, ou que prefiram axé. Hoje eu tô na roda de pagode, amanhã é dia de baile funk. Quem vai dançar comigo hoje?

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Foto: Boracay Island – The Philippines

Cara, cadê meu carro?

Chegando em Kalibo, fechamos o olho e apontamos pra uma das 15 vans brancas paradas na frente do aeroporto. Todas iguais. Vai essa mesmo. Sem Zika, seu vírus, teu alerta ficou pra trás lá no saguão. Agora eu tô nas Filipinas.

Duas horas de van até chegar no porto. Durante o caminho, o motorista “pedia” para os 6 passageiros se espremerem enquanto as crianças iam entrando. As aulas do dia tinham acabado e a van escolar também fazia bicos de van pra turista.

Ao som de Bob Marley, um barco me levava pra lugar algum. Acordei de manhã com passagem pra Burma, mas há duas horas estava nas terras de Duterte.

Terra à vista! Aquela palmeira não me engana. Ainda tem uma hora de Tuk-Tuk até chegar no Mad Monkey. Eita, aonde eu tô? Quem é esse senhor que tá me carregando pelo pôr-do-sol mais bem colorido que esse universo já me deu?

Lá é terra, casa simples, barulho. Muito barulho. Quanto barulho se escuta todo dia. Finalmente um silêncio.

“Então, de Itaparica vocês pegam um barco até lá. De lá, são quatro horas de ônibus até a metade do caminho. Depois, pegam outro ônibus e depois um barco. Aí chegou no Morro.

De Moreré, vocês caminham pela praia até encontrar a estação dos tratores. Pega um trator ou um quadriciclo até Boipeba. Daí caminham umas horas e pegam um barco para Barra Grande. De lá, procura alguém que te leva até o Cassange”. Ô mainha, essa Bahia é de rei.

Mas cara, cadê meu carro? Ele, que é minha casa, meu porto seguro, não vai nem carregar minha mochila? Que nada. Me abandonou pra tomar gasolina no bar. Então eu vou de bicicleta. Esse é meu único meio de transporte agora mesmo.

Sem tempo, irmão. Sem. Tempo. Irmão. Eu não tenho tempo pra viver a mesma vida durante uma vida toda. Olha a quantidade de opções que existe por aí. Barco, trator, moto, trem, bicicleta, tuk-tuk (!) Quem sou eu para caminhar só com minhas pernas?

Já recrutei minhas mãos e avisei que da próxima é a vez delas. Eu sou internacionalista e é isso que internacionalistas fazem. Eles não sabem diferenciar mãos de pernas, ônibus de avião. Mas e eu que sou dentista?

Você é humano? Então pronto. Não sabe diferenciar também. Só não aprendeu ainda. A partir de agora, tá liberado se virar com o que tem e viver mais do que não convém.

Eu não sou nada. Eu estou sendo algo. Eu sou tudo. Quando me chamaram pra andar de Jeep nas montanhas deu um buggy no sistema e de início eu recusei. Me assustei. Mas depois entendi. Então é isso que o surfista sente quando anda de skate?

Sabe-se lá qual será meu meio de transporte da próxima vez que a gente conversar. Provavelmente um patinete, porque ainda tenho medo de subir naquele que é elétrico. Mas a verdade é que não importa. Eu ainda vou andar por todos. O fato é que eu achava que precisava de um carro.

Hoje eu nem lembro aonde estacionei. Acho que vendi. Me pagaram em sonhos. Ninguém resiste àquela oferta do dia tentadora né? Compre um sonho e leve dois. “Só hoje, se você levar um abridor de mão da marca Zona de Conforto, você concorre há quatro novas chances de viver algo incrível e quinhentos mil novas possibilidades em retorno”.

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Foto: Boracay Island – The Philippines

Feminidade

Feminidade. Quase um feminismo. Mais que isso. Feminidade.

Se tem uma coisa que eu admiro é mulher. Todo tipo de mulher. Mulheridade. Mulher não tem idade.

Mulheridade é… o quê? É uma canção cantada desde os velhos tempos. Ancestralidade. Tem coisa mais bela que a anciã? Mulher sábia, mulher selvagem. Mulher-esqueleto. Eu carrego a minha comigo sempre.

Já dizia a velha sábia. Aquela que nada teme, tudo vê. Uma vez ela me disse que minha intuição não erra nunca. Mal sabia eu que intuição não é instinto. Mal sabia eu que eu carregava a lua dentro de mim. Até hoje.

Mulher não se ajuda. Se julga. A mulher de hoje em dia só quer saber de reclamar do patriarcado. Cadê a atenção pro matriarcado? Igualdade? Possibilidade? Humanidade.

Ah, se a velha sábia soubesse. E se eu contar pra ela, que a mulher hoje vai pra rua reclamar da opressão? Ótimo. Que ela joga pra fora toda a energia que tem dentro? Peraí. Que ela descarrega sua potência implorando pro mundo lhe dar atenção, quando ela mesma não se dá? Eita.

O feminismo é todo dia. Ele é vivo, ele é dinâmico. E se eu contar pra velha sábia que eu não marchei no dia das mulheres? Hmm… Tira esse -ismo. O ismo não é condição. Bota um -ade. A de quê? A de artigo feminino.

Ô dona moça, eu tô entendendo é nada que cê tá dizendo.

Fala com a velha sábia. Pergunta pra ela que ela vai te responder. Um dia eu vou ocupar o lugar dela. Tá mais que na hora de ouvirmos suas histórias, o que ela tem pra nos contar.

Ô mulher, faz isso contigo não. Ela é tão linda. Um dia ela já foi baleia, hoje ela é sereia. Ela é mãe. Avó, tataravó. Bisavó. Eu carrego elas comigo, e você também. Eu sou mulher e minha potência orgástica é infinita. É um acúmulo de potências que me guia ao encontro da minha.

Um texto sem pé nem cabeça, porque ele é o corpo todo. Você, que é mulher, liberte-se. Dê uma passadinha lá na vila, a velha ta te esperando. Ela tem tanto à dizer… Bruxa-má. Bruxa-boa. Pega a vassoura e sai voando. Espalha por aí esse encanto.

O homem, ele é lindo. Mas ele só reproduz o que aprendeu. Basta ensiná-los diferente. Levar o ódio pra passear no dia das mulheres não é lá grande ensinamento.

Muda a frequência desse rádio aí, sintoniza na rede Feminidade. Lá, você encontra depoimentos de todos os tipos de mulheridade. Tem tons de pele, sexualidade, orientação sexual, altura, gordura, estria e celulite. Tem todo tipo de manifestação externa de dor interna. Tem todo tipo de cura. É um paraíso.

Vou contar pra velha sábia que o -ismo foi embora e deixou o -ade em seu lugar. Vou contar pra velha sábia que a mulher selvagem tá cantando e ela trouxe a mulher-esqueleto junto. Elas tão chegando. Tô sentindo o cheirinho de café quentinho.

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Foto: Palm Beach, Sydney – Australia

Trava-língua

E de repente eu travei. Tava tudo indo tão bem, e aí eu travei. Eu estava animada, encantada, apaixonada. E não é por ele não, moço, é por mim sim. Mas aí eu parei e não consegui mais continuar.

Estava tudo indo tão bem, e aí eu travei. Cansei, sentei no muro e lá me deixei. Tem vezes que a gente começa algo e depois não consegue mais continuar, né? Por quê?

A ideia de voar com os pássaros me parece tão bem. Mês passado eu decidi tentar. Por que não? Peguei minha escadinha de madeira, corri lá pro sertão e pedi pro Seu Gavião me ensinar a voar. Ele me disse: “Olha, vai ser difícil. Antes de tudo, você vai ter que realmente querer voar.” Eu falei que isso não era problema, porque eu queria mesmo. Quem não quer esbarrar com um avião enquanto vai no supermercado fazer a comprinha da semana?

Ele disse: “Então tá bem. O primeiro passo pra voar é acreditar na possibilidade do voo. Sente-se aqui e fique duas horas conversando com seus pensamentos, e escute o que eles têm a dizer”.

Mas que absurdo! Eu peguei minha escadinha de madeira, corri lá pro sertão, pedi pro Seu Gavião me ensinar a voar e ele me manda ficar sentada encarando meus pensamentos? Eu quero logo é sair voando por aí!

De cara emburrada, sentei. Logo já me dei de cara com o Sr. Medo, que naquele dia estava trabalhando de porteiro pro hotel em que eu tinha feito uma reserva. “Você vai passar a noite aqui?”, disse ele. Eu acenei com a cabeça, e, sem sucesso, tentei fugir da conversa. Mas ele é insistente, e ficou umas duas horas ali trocando uma ideia comigo.

Sabe, eu fui pegando gosto pela coisa. Aquele senhor de testa franzida e barba grisalha a princípio não me agradava – nenhum pouco – mas sua insistência me obrigou a ficar ali parada ouvindo o que ele tinha pra me dizer. E até que acabei gostando da conversa. Sabe o que ele me disse? Que seu nome era Medo porque sua mãe, Coragem, havia o abandonado quando era criança, e seu pai, Persistência, estava tão abatido com a falta de Coragem que resolveu descontar no pobre garoto. E depois fugiu. Uma tragédia!

Mas estava tudo indo tão bem, que decidi aprender a voar. Seu Gavião me disse então que o segundo passo agora era treinar o voo, e persistir. “Ser mestre no básico”, disse ele.

Mas que absurdo! Eu peguei minha escadinha de madeira, corri lá pro sertão, pedi pro Seu Gavião me ensinar a voar, ele me mandou ficar encarando meus pensamentos, conversei com o Sr. Medo, e agora ele me manda treinar e me tornar mestre no básico? E persistir? E se me faltar coragem? Quem vai cuidar do medo?

Estava tudo indo tão bem, e aí eu travei. Estava animada, encantada, apaixonada pela ideia de voar com os pássaros. Mas comecei. E aí percebi que ia levar um tempo até eu esbarrar com um avião no meio do caminho pro supermercado no dia de fazer a comprinha da semana. E aí me apoiei nesse muro pra amarrar meu cadarço e por aqui fiquei.

Ei! Quer saber? Eu acho que a culpa é do Seu Gavião! Ele que não sabe ensinar! Gavião nem voa direito! Se eu resolvi voar, tenho que ter aula de voo, oras bolas. Que mané história de ser mestre no básico. O básico serve pra que?

Eu vou tentar de novo. Vou pegar minha escadinha de madeira, correr pra direção oposta do sertão e pedir pro Seu Avestruz me ensinar a voar. Esse sim vai me dar aulas de voo! O Sr. Medo que converse sozinho. Será que algum dia Persistência vai voltar e perdoar a falta de Coragem?

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Foto: Nazaré – Portugal

Não (re)inventa moda

Eu resolvi que eu quero conseguir pintar uma tela a óleo com o dedinho esquerdo do meu pé direito. É isso mesmo. Minha meta agora é fazer com que o dedinho esquerdo do meu pé direito segure alguns pincéis e faça uma pintura. E esse pintura tem que ser igual ao “Sol Nascente”, do Monet. Aceito nada menos que isso.

Tá, pra isso eu tenho então que ensinar o meu dedinho esquerdo a segurar um pincel. E tenho que ensinar o meu pé direito que agora vai ter um dedinho ali que vai virar pintor, então ele que se resolva em como vai deixar de sustentar o meu corpo pra virar suporte de artista.

Péra, o que? Isso não faz sentido. Dedinhos de pé não são como dedos da mão. E pé não é mão. E um dedo sozinho não segura pincel…

Quero nem saber. Eu vou ser o que eu quero ser. Já dizia Charlie Brown que o impossível é só questão de opinião. Quem sou eu pra contrariá-lo???

Eu vou é me reinventar. Vou sair daqui agora, pegar minha tobata, e partir pras Bahamas em busca da neve. Ah, a neve… tão linda e branquinha. Parecida com a areia da praia. Neve e praia são quase a mesma coisa né?

Cê ta inventando história, dona moça. Ficou é maluca. Parece aquelas minas que viram CEO de empresa: deu a louca na dona mariquinha.

Invento. Me reinvento. Não sou a mesma todo dia. Sou melhor a cada dia. O que eu gostava ontem talvez já não goste mais hoje. O que eu gostava ontem talvez hoje eu goste ainda mais. Descobri que gosto de tanta coisa… Tanta. Coisa. Será que consigo fazer tudo? Será que posso ser tudo? O que mais eu quero ser? Fazer?

Cozinhar, pintar, passar roupa. Passar roupa? – Eu sou única, mon amour.

Que Deus me abençoe e me faça gostar de cada vez mais coisas. E que eu aprenda a desgostar também. A desapegar. Se a fase já passou, então já Elvis. Se a fase tá começando, ENTÃO (NÃO) ME SEGURA

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Foto: Lisboa – Portugal

A minha casa é o meu laboratório.

Cada vez mais eu percebo, abismada, o quanto as pessoas não conseguem ficar em casa. Poderia passar horas divagando aqui sobre a minha jornada com a minha casa e como eu a amo, mas esse não é o ponto agora. O ponto agora é que as pessoas não conseguem mais ficar em casa.

Elas têm medo. Elas morrem de medo de ter que passar algumas horas em casa. É sério, parece brincadeira, mas minha pesquisa empírica – vulgo, prestar atenção no que as pessoas estão falando – demonstra de forma clara o quanto as pessoas têm medo de ficar em casa. Elas nem estão prestando atenção no que querem dizer quando falam o que falam, mas eu estou.

“Eu prefiro ir pra qualquer lugar do que ficar uma noite a mais em casa”. “Tá, você ficou em casa todo esse tempo?”. “Mas, o que você faz pra se divertir?”. Simples frases que revelam muito. Talvez aqui jogadas não pareça, mas da próxima vez que você ouví-las, preste atenção. No contexto. O contexto revela muito.

E não me leve à mal, eu não julgo. E não julgo mesmo, eu já fui assim. Já fui muito assim. Dói ter que ficar em casa quando ainda não temos um carinho por ela, quando ainda não estabelecemos uma conexão profunda com nós mesmos.

Por favor, não leve esse texto pro lado racional da coisa. Eu sei que lendo não parece fazer sentido. Então só sinta. Deixa a energia das minhas palavras te tocar, e não tente entender de forma lógica. Eu não estou nem falando muito da casa como lugar físico. Tô indo além. Então só sinta.

Precisamos aprender a ficar em casa. A se divertir em casa. A se descobrir em casa. O bem mais valioso que existe nesse universo é o tempo passado em casa. Vivido em casa. Não adianta passar tempo em casa mexendo no celular, ou só vendo televisão. Viva a sua casa. Se descubra em casa. É bem ali mesmo que você vai descobrir quem você é. Quem você quer ser. E é ali mesmo que você vai começar a se tornar essa pessoa que você quer ser.

Por favor, viva um tempo em casa. Pegue um alimento na mão e sinta seu cheiro. Sua textura. Qual a cor? Qual o sabor? O que te deu vontade de cozinhar com ele? Hoje acaba em pizza.

Peraí que eu vou limpar o banheiro. Eita, o que é isso aqui? Que objeto é esse que eu nem lembrava que eu tinha? Nossa, como é lindo!

Quer saber, eu vou arrumar meu guarda-roupa. Tem muita cois… meu Deus olha essa blusa! Eu nem lembrava que eu tinha ela! Caramba, eu usei ela naquela viagem incrível pros andes suíços na tailândia. Nossa, que viagem incrível que foi. Que saudade. Qual será minha próxima viagem? Bem que eu podia ir passar um tempo esquiando no Havaí né? Ninguém nunca ouviu falar do Butão, é pra lá que eu vou!

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Foto: Florianópolis – Brasil