Mademoiselle

Sete mulheres encontravam-se na varanda de uma casa branca de madeira. Uma delas disse: “Silêncio, tenho uma coisa a anunciar!”.

Silêncio.

“O que foi?”, perguntou Madame. Madame era feia que só vendo, não sabia cantar e quase nem respirar. Tinha pinta na orelha e cintura de camelo. Mas era filha do pastor da vila – o dono da coisa toda – então era muito cortejada e havia diversos pretendentes correndo atrás de si.

Madame havia nascido prematura. Quando sua mãe deu à luz, não sabia se quem vinha era homem ou mulher, e por isso não sabia nem o nome. O pai queria mulher.

“A partir de hoje, vou virar selvagem!”, respondeu Syrlêi.

“Selvagem como uma noite de super lua.

Vou destruir minhas amarras ao passado, minha pose de boa-moça. Na escola, aprendi com meus pais que é importante ser educada e agradar o moço, usar o guardanapo no colo, cumprimentar quem eu não quero e não ouvir conversa de adulto.

Mas a vida… qual é o sentido? Se não tem nada lá fora, a quem eu estou tentando agradar além de eu mesma?

Será que é educado ser educada, ou será que o educado é falar o que pensa? Ser autêntica. Concordar pra agradar ou concordar em discordar?

Por quê será que nos é (mal) educado que ser educada é o educado?

A partir de hoje, vou virar selvagem.”

Shivete não gostou do que ouviu e achou que a moça tinha ficado é louca. Levantou-se do tapete de palha estendido no chão e pôs-se a gritar:

“Onde já se viu uma moça como você agora querer se rebelar! Tem tudo que deseja, o privilégio de vir de uma origem abastada, comida, água, roupa passada e vinho nos finais de semana até às 20h. Tem gajos que correm atrás e andam de joelhos à Marte para lhe fazer feliz. Ingrata! Ingrata!”

“Ingrata! Ingrata!”, gritou Shivane e Shufiane, enquanto Soymar e Soylar apoiavam a amiga cantando versos de chamamento à Feminidade.

O grupo encontrava-se divido em três mulheres para cada lado da discussão. A única que não havia se manifestado era Madame.

Após uns instantes, a filha do pastor pôs-se a suspirar. Entendia a selvageria de Syrlêi, mas vivia as crenças de Shivete. Em um mundo onde se aprende a ter o externo como referência, viver uma vida conforme nossos credos pessoais é um desafio que só os bravos se poem a encarar.

E encarar novos desafios significa estar disposto a se tornar uma nova pessoa. Romper com o conhecido do passado e se abrir para um futuro incerto, quebrar padrões de comportamento e pensamento e, muitas vezes, frustrar as expectativas sobre nós não-justamente postas por aqueles que nos cercam.

Eu acredito que ser selvagem significa ser mais de si mesmo. Significa não ser quem você está sendo para se tornar quem você realmente é, independente de gênero, idade ou etnia, sendo a intensidade de conexão e consciência que um possua com seu próprio ser o único fator limitante do nível de selvageria a ser vivenciado.

Madame nasceu aprendendo a não falar de boca cheia e sentar de coluna ereta, ir na missa todo domingo e guardar o sábado, em vez de engolir antes de falar e cuidar da postura, ir na missa quando tiver vontade e rezar como achar melhor. A moça se contentava com o mínimo e se sentia na obrigação de estar satisfeita com isso, sentindo a culpa de ser grata mesmo sentindo faltas.

“Ingrata!”, gritou Madame.

“Ingrata eu sou de não aceitar a selvageria que existe em mim e a pulsação que me leva a me tornar mais de eu mesma. Ingrata eu sou de não honrar aquilo que me faz ser única no mundo – a minha essência. Ingrata eu sou de não me agarrar à coragem que me instiga a deixar de ser só um corpo para se tornar um campo elétrico de vibrações, a deixar de ser Madame”.

Por fim, virando-se para Shivete, Shivane e Shufiane, gritou: “Ingratas!”.

*

*

Foto: Ghent, Bélgica.

Sorte existe?

Só eu sei

O que eu passei

Pra chegar até aqui.

Pra chegar? Aonde?

Rosto bonito, quem vem lá. Carrega um saco de areia e um pilão pra moer semente de mostarda.

Parece que nada faz sentido até sentir.

.

Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“É hoje, abre a porta que a sorte chegou.”

Dona Sorti entrou com tudo pela porta. Toda esbelta e elegante, vestia um casaco de pele de morcego e brincos de diamante 8 quilates. Um raio de sol refletia em seu par de orelhas, mostrando que aquela mulher não era qualquer senhora.

“Bon jour mademoiselle, hoje é seu dia de sorte”, disse a velha enquanto levantava os braços e encarava a janela atrás da anfitriã.

Persiene, sem entender nada, serviu-lhe uma xícara de chá e, abismada, permaneceu calada.

Dona Sorti então começou a caminhar pela casa, observando tudo como quem não quer nada. Mexeu aqui, vasculhou ali, abriu todas as gavetas do cômodo até encontrar o bendito documento.

“Aha! Aqui está seu presente!”

A velha então mostrou a Persiene um anel de pedra-sabão que retirara de uma caixinha no fundo do armário da TV. Era pesado, mas o sentimento ao colocá-lo em seus dedos era de leveza e alegria.

“Estava aí o tempo todo?”, perguntou a moça.

“Sim. E não.”, disse a Dona. “O meu presente sempre esteve guardado aqui, mas você nunca iria encontrá-lo pois estava fora do seu campo de visão.”

Sorti então começou a explicar porque Persiene nunca teria enxergado o anel se não tivesse ficado tanto tempo sem ele. Andando de um lado pro outro de forma animada e espalhafatosa, a velha lecionava à jovem quão importante e essencial foi a atitude da moça de assumir responsabilidade.

“O meu papel”, disse ela, “é servir como uma justificativa para aqueles que não tem nenhuma para dar em troca, e presentear aqueles que têm”.

.

Era um dia frio de inverno, porque tudo começa em um dia quente de verão. Quatro da manhã, toca o despertador e ela atende a campainha. “Olá?”

“E aí, já acordou?”

“Acordei agora. Como posso ajudar?”

“Senhora, temos uma reclamação no condomínio. Seu cachorro fez suas necessidades no tapete do vizinho novamente.”

*

*

*

Foto: Sydney, Australia

Feminidade

Feminidade. Quase um feminismo. Mais que isso. Feminidade.

Se tem uma coisa que eu admiro é mulher. Todo tipo de mulher. Mulheridade. Mulher não tem idade.

Mulheridade é… o quê? É uma canção cantada desde os velhos tempos. Ancestralidade. Tem coisa mais bela que a anciã? Mulher sábia, mulher selvagem. Mulher-esqueleto. Eu carrego a minha comigo sempre.

Já dizia a velha sábia. Aquela que nada teme, tudo vê. Uma vez ela me disse que minha intuição não erra nunca. Mal sabia eu que intuição não é instinto. Mal sabia eu que eu carregava a lua dentro de mim. Até hoje.

Mulher não se ajuda. Se julga. A mulher de hoje em dia só quer saber de reclamar do patriarcado. Cadê a atenção pro matriarcado? Igualdade? Possibilidade? Humanidade.

Ah, se a velha sábia soubesse. E se eu contar pra ela, que a mulher hoje vai pra rua reclamar da opressão? Ótimo. Que ela joga pra fora toda a energia que tem dentro? Peraí. Que ela descarrega sua potência implorando pro mundo lhe dar atenção, quando ela mesma não se dá? Eita.

O feminismo é todo dia. Ele é vivo, ele é dinâmico. E se eu contar pra velha sábia que eu não marchei no dia das mulheres? Hmm… Tira esse -ismo. O ismo não é condição. Bota um -ade. A de quê? A de artigo feminino.

Ô dona moça, eu tô entendendo é nada que cê tá dizendo.

Fala com a velha sábia. Pergunta pra ela que ela vai te responder. Um dia eu vou ocupar o lugar dela. Tá mais que na hora de ouvirmos suas histórias, o que ela tem pra nos contar.

Ô mulher, faz isso contigo não. Ela é tão linda. Um dia ela já foi baleia, hoje ela é sereia. Ela é mãe. Avó, tataravó. Bisavó. Eu carrego elas comigo, e você também. Eu sou mulher e minha potência orgástica é infinita. É um acúmulo de potências que me guia ao encontro da minha.

Um texto sem pé nem cabeça, porque ele é o corpo todo. Você, que é mulher, liberte-se. Dê uma passadinha lá na vila, a velha ta te esperando. Ela tem tanto à dizer… Bruxa-má. Bruxa-boa. Pega a vassoura e sai voando. Espalha por aí esse encanto.

O homem, ele é lindo. Mas ele só reproduz o que aprendeu. Basta ensiná-los diferente. Levar o ódio pra passear no dia das mulheres não é lá grande ensinamento.

Muda a frequência desse rádio aí, sintoniza na rede Feminidade. Lá, você encontra depoimentos de todos os tipos de mulheridade. Tem tons de pele, sexualidade, orientação sexual, altura, gordura, estria e celulite. Tem todo tipo de manifestação externa de dor interna. Tem todo tipo de cura. É um paraíso.

Vou contar pra velha sábia que o -ismo foi embora e deixou o -ade em seu lugar. Vou contar pra velha sábia que a mulher selvagem tá cantando e ela trouxe a mulher-esqueleto junto. Elas tão chegando. Tô sentindo o cheirinho de café quentinho.

.

.

Foto: Palm Beach, Sydney – Australia